Por Joaquim Dantas
Há algo de sobrenatural em toda forma de linguagem. Os signos, uma vez nascidos, plasmam a realidade a que se atrelam. Portanto, são as palavras que criam o mundo e não o contrário. Damos nomes, inclusive, a entidades vazias, definidas exclusivamente pela ausência. E, se há algo de estranho nesse procedimento, há algo de ainda mais sinistro nas coisas que escolhemos não nomear.
Afirmar que Danny e Michael Philippou são duas das vozes mais originais do cinema de horror atual é uma constatação verdadeiram, mas carece de explanação. É que, veja bem, a obra artística é um objeto estranho, feito de forma e conteúdo, para o qual a ideia de inovação é tão fundamental quanto o ar. Mas essa ideia, não necessariamente totalizante, pode vir esgarçada em uma coisa ou na outra. Alguns artistas violam bons e velhos temas ao acertá-los em cheio a partir de novos ângulos. Outros, mantendo a pele de suas histórias resguardadas, modernizam seus textos a partir de temática e trama, mexendo a panela do gênero em uma outra direção. É nessa segunda categoria que os irmãos Philippou se enquadram.
Se o cinema dos gêmeos australianos vem apostando em uma concepção estilística contida (mas elegante) e pouco chamativa (embora com explosões viscerais de violência), é no trabalho subversivo com os mecanismos temáticos e narrativos que eles projetam sua desautomatização.
Vejamos, por exemplo, seu trabalho inaugural, Fale Comigo, uma história de horror aparentemente simples e direta, envolvendo violência corporal e alienação juvenil. Com seu grupo de protagonistas adolescentes culturalmente isolados dos pais, assombrados e perseguidos pelas consequências de um terrível erro de julgamento, esse é um filme que funciona – ao menos na superfície – como uma versão modernizada do slasher. No entanto, ao invés do assassino mascarado tradicional, surge uma mão mística embalsamada; substituindo o horror real do serial-killer, a presença de uma entidade sobrenatural – mas não como o monstro dos sonhos, Freddy Krueger, ou o Jason zumbi dos Sexta-feira 13 tardios. O “antagonista” em Fale Comigo é uma entidade sem corpo, forma espectral de maldição, e as consequências dessa corrupção ritualística do espírito são, sobretudo – e violentamente –, físicas. É justamente a partir dessa subversão das convenções que os Philippou revigoram os gêneros narrativos com os quais eles trabalham: um slasher sem assassino, um filme de possessão sem cunho religioso, um horror sobrenatural em que a tensão se volta não ao espírito, mas ao corpo.
Além disso, ao construírem, em Fale Comigo, uma alegoria cinematográfica da “cultura das redes sociais”, com seus rituais esvaziados e seus comportamentos alienados, esses cineastas fincam a narrativa de horror na atualidade, refletindo sobre traumas e temas profundamente contemporâneos. Pense na reprodução infinita das dancinhas do Tiktok, no doomscrolling dos vídeos react, na vida falsa em filtros do Instagram e nos incontáveis desafios – do balde de gelo, da colher de canela, da famigerada Baleia Azul – oriundos da internet. Fale Comigo é a versão embotada e indireta dessas imagens, evidenciando, em seu poder de metáfora, o horrendo real presente nas mecânicas que consomem a quase totalidade desse nosso “abominável mundo jovem”.
E é da continuação e amadurecimento dessas experimentações narrativas e revitalizações temáticas que nasce também o gênio de Faça Ela Voltar (2025), a mais recente investida dos irmãos Philippou no Cinema.
O filme abre ao sabor do foundfootage, com a imagem granulada e distorcida de um horrendo ritual. Mas a metragem do VHS maldito dura pouco e rapidamente cortamos para um estilo cinematográfico mais tradicional. Somos introduzidos na trama a partir de um trágico incidente: a súbita morte de Phil, pai solteiro do “quase legalmente adulto” Andy (Billy Barrat) e de sua “legalmente cega” meia-irmã Piper (Sara Wong). Com a morte do patriarca, os irmãos são levados a morar na residência isolada de Laura (Sally Hawkins), uma ex-funcionária do conselho tutelar que agora atua como “mãe postiça” para crianças desabrigadas. Completando essa bizarra prótese familiar, temos Oliver (Jonah Wren Phillips), o sobrinho de Laura, um garoto estranhíssimo, que grunhe mais do que fala, zanza erraticamente pela propriedade e tem nos olhos uma perturbação esvaziada e sinistra. Desde os primeiros momentos, é possível perceber que a matriarca postiça desse grupo esconde, sob seu riso positivamente lunático e sua bondade artificialmente exagerada – especialmente em relação a Piper –, um sórdido segredo sombrio. Eventualmente descobriremos que, em algum momento do passado, a filha de Laura, Cathy, morreu tragicamente afogada na piscina de casa, deixando a mãe em um estado de solidão, remorso e insanidade. A piscina permanece vazia no quintal da casa, enorme boca escancarada pairando ameaçadoramente sobre a trama. Cathy, quando morreu, tinha a mesma idade de Piper.
Faça Ela Voltar (2025) parece um filme que se enquadra perfeitamente em uma das mais recorrentes e insuportáveis tendências do horror contemporâneo: a narrativa sobrenatural e/ou psicológica do luto – o que eu chamo carinhosamente de “luto porn”. De uns anos para cá, a quantidade de filmes que se apoiaram nesse tropo engessado como atalho dramático é um troço perturbador, marca do esgotamento e da preguiça criativa da indústria cultural. De Sorria (2022) a Oddity: objetos obscuros (2024), de Stopmotion (2023) a Eu Vi o Brilho da TV (2024), de O Podcast (2022) a Cuckoo: o medo chama (2024), a lista de menções desonrosas é vasta e tediosa – Ari Aster[1], por exemplo, parece desconhecer qualquer outro tipo de assunto. Parece que toda vez que um cineasta quer pagar de intelectual e autor de uma “obra séria” – leia-se: pseudocomplexa, com uma capinha de linguagem figurada que faz com que o espectador médio se ache um decifrador de significados profundos por ter entendido uma mensagem tão opaca quanto um recado de porta de geladeira –, lá vem novamente a imagem do monstro-metáfora do luto. No entanto, o “feel bad movie” de 2025, ao invés de se apoiar nessas convenções tacanhas, as desmantela, valendo-se de relações narrativas inventivas e de um jogo alegórico complexo.
A primeira questão que me chama a atenção é a maneira como os Philippou escolhem trabalhar com estereótipos cinematográficos – na construção de seus personagens e nas relações entre eles –, mas sempre a partir de uma lógica da subversão. Pegue, por exemplo, nosso par de protagonistas. Andy é “bem mais velho” que Piper – para os padrões da adolescência, de 14 a 17 anos é um bruto salto –; e, para completar, eles ainda são irmãos de mães diferentes. Prato cheio para uma “relação conflituosa” no arcabouço dos tropos hollywoodianos, correto? No entanto, aqui nós temos uma dupla que emana confiança mútua e companheirismo desde o início. Aprender a se apoiar um no outro não é um arco narrativo, mas uma circunstância dada e estabelecida no caso de Andy e Piper. Ao invés de um estranhamento preguiçoso, os Philippou retratam essa relação de uma maneira próxima da realidade – uma vez que esse tipo de “construção familiar não-tradicional” é muito mais comum no nosso mundo do que o ideal falso e artificial da família nuclear dos adesivos de para-brisa, com mamãe, papai, filhinhos e cachorro.
Nesse mesmo sentido, temos também, por exemplo, o elemento da deficiência visual de Piper, que, nas mãos de diretores mais relapsos, poderia facilmente descambar em questões como autopiedade, exclusão social, problemáticas identitárias etc. – clichês sobre clichês sobre clichês. Porém, em momento algum a cegueira da garota é tratada como um problema essencial. É óbvio que, num sentido narrativo, essa característica apresenta seus desafios – o deslocamento físico em um ambiente não familiar, os enganos na interpretação de sons e ações ao redor da personagem, as possibilidades de manipulação física e psicológica por parte de outros –, mas essa é uma questão que nunca se torna meramente apelativa. A deficiência não está lá para nos causar pena ou para ser heroicamente superada – de Ida Lupino (Cinzas que Queimam, 1951) a Audrey Hepburn (Um Clarão nas Trevas, 1967) e Mia Farrow (Terror Cego, 1971)[2], esse é um tropo tão reciclado que cria quase um subgênero –, assim como também não é uma metáfora rasa para uma personagem que precisa “acordar para enxergar a realidade do mundo”. Piper está muito bem acordada desde o início; e sua cegueira é muito mais um índice particular da personagem e uma forma de articular mecanismos de tensão na obra do que qualquer outra coisa.
Além disso, contrariando a trend, os Philippou atacam o tema/subgênero do horror do luto de maneira complexa, valendo-se, para isso, de um procedimento meticuloso de redução estrutural. Ou seja, ao invés de se apoiarem nessa experiência humana dolorosa para criar um atalho dramático preguiçoso/senso imediato de empatia em relação aos personagens, eles pensam e refletem sobre essa ideia a partir de sua estrutura mais profunda: a inescapável imagem daquilo que falta.
É claro que, de maneira óbvia, existe o luto de Laura em relação à filha e, de modo espelhado, o das crianças em relação ao pai. No entanto, o índice do vazio e da lacuna se manifesta incessantemente de inúmeras outras formas na narrativa. É como se o filme nos mostrasse constantemente uma realidade tomada pela falta. Piper não possui o sentido da visão; já a Andy, ainda não legalmente um adulto, escapa a agência sobre si, sobre seu destino e o da própria irmã. Oliver, por sua vez, é uma figura quase afásica (sem voz), de ações aparentemente sem sentido, objeto desprovido de razão e – como eventualmente descobriremos – portador de um vazio identitário. E Laura, talvez o mais impactante símbolo nessa obra, perambula pela trama como um ser esvaziado. Ao perder a filha, ela não perde somente sua condição de mãe e sua estrutura familiar; perde seus limites morais, sua sanidade, sua identidade, o próprio cerne que constituía sua existência. É interessante notar o duplo absurdo linguístico de sua natureza: significado despido de significante[3] e, ao mesmo tempo, forma tortuosa ausente de conteúdo. Laura é um monstro inominável, ocupado por uma lacuna, definido pela falta, signo incompleto a procura de reconstituição – custe o que custar.
Se referir a mais recente obra dos irmãos Philippou simplesmente como uma “narrativa de luto” é uma simplificação superficial, redução extrema de sua complexidade. Faça Ela Voltar não é somente um dos melhores filmes de horror da atualidade a trabalhar com esse drama humano[4]; é também uma incessante, reflexiva e original alegoria do que não se deve nomear. Com uma trama constantemente assaltada por vazios, metalinguisticamente invadida pela falta e tematicamente assombrada por incontornáveis lacunas, essa é uma obra que reflete, de maneira profunda, sobre a – contraditória e impositiva – inescapável presença da ausência.
[1] De Hereditário (2018), Midsommar: o mal não espera a noite (2019) e Beau Tem Medo (2023).
[2] Três filmes excepcionais, diga-se de passagem, apesar da construção prototípica de suas personagens centrais.
[3] Embora exista no português o termo para “filho sem pai” (o órfão), não existe no dicionário um que nomeie a horrenda realidade dos “pais que perderam o filho”. Índice poderoso, a falta de nome é, muitas vezes, uma tentativa – ainda que meramente linguística – de apagar uma entidade real que tememos encontrar.
[4] Outro exemplo absolutamente excepcional é As Mortalhas (2025) do David Cronenberg, que eu já analisei por aqui: https://veneta.com.br/blog/cinema-7/amor-para-alem-do-horror-542 .
Joaquim Dantas é responsável pelo Selvagem Podcast, junto de Juscelino Neco, disponível em todos os agregadores.