Há Algo de Podre no Reino da Transilvânia

Robert Eggers revisita Nosferatu, mas perde a essência de seu terror único ao ceder à narrativa convencional.
23 de janeiro de 2025 por
Há Algo de Podre no Reino da Transilvânia
Editora Veneta

*Por Joaquim Dantas

Quando Robert Eggers rasgou a proverbial tela prateada pela primeira vez, com A bruxa (2015), eu me lembro da distinta sensação de presenciar o nascimento de um mestre contemporâneo. Atmosférico, inexplicável e hipnótico; anacrônico, mas ainda assim de sabor moderno; perturbadoramente estranho e extremamente original... o filme em si vibrava possuído por uma entidade demoníaca insondável. A bruxa é uma obra de horror de arte, talhada por um autor; uma coisa mais próxima de O homem de palha (1973) e O espírito da Colmeia (1973) do que das produções de seus contemporâneos.

Quatro anos depois, Eggers retornaria às telas e consolidaria essa impressão inicial com aquele que eu considero talvez o melhor filme de horror dos últimos 25 anos: O farol (2019). Se A bruxa parecia um retorno à subversão artística da década de 1970, o filme de 2019 arqueava uma volta ainda mais longa e improvável no tempo. O farol, com seu enredo e personagens minimalistas, sua composição quadrangular aprisionadora, sua ambientação isolada e claustrofóbica e seu imaginário quase abstrato, soava como o renascimento, 100 anos depois, dos primórdios da pura narrativa visual, teatro de luz e sombra. Era como descobrir um filme obscuro de horror dos anos 1920.

Seu próximo filme, O homem do Norte (2022) – seu pretenso primeiro blockbuster de estúdio –, parece ter tido alguns clássicos problemas na relação autor/produtor[1]. Era evidente que, na perda do controle final sobre a produção dessa obra, algo da visão tão idiossincrática do diretor havia se perdido no caminho. Por isso, quando tentei assistir ao filme, não me surpreendi ao perceber que toda a abstração insondável e o estranhamento, típicos dos filmes anteriores, tinham sido colocados em segundo plano, dando lugar a uma narrativa mais tradicional e palatável. Confesso que, apesar de o apuro técnico e a linguagem visual de Eggers ainda estarem claramente presentes ali, eu nunca consegui ir até o fim com essa história viking de vingança. Nada contra... Mas uma narrativa linear não era o que eu esperava de um filme desse autor.

Eis que, alguns anos depois, é anunciado que o quarto filme desse mestre contemporâneo vai ser um remake de Nosferatu, o grito absoluto de Murnau – segundo remake digno de nota dessa obra seminal, diga-se de passagem, tendo sido recriada anteriormente, em 1979, por um dos grandes visionários do cinema alemão, Werner Herzog. Eu não poderia ter ficado mais empolgado. Parecia que, depois da queda artística para um cinema formulaico que tinha sido O homem do Norte, Eggers ia retornar a suas raízes, bebendo novamente daquele horror puro, selvagem e indomável. Levando em conta o material de base e a última grande investida experimental do diretor – O farol –, ler “Robert Egger’s Nosferatu” me trazia à mente uma impressão nítida: a de que, em alguns meses, eu seria mesmerizado por uma narrativa visual sufocante e inviolável, de um horror tão belo quanto abjeto.

Imaginem então minha surpresa quando, ainda mesmo nos minutos iniciais, eu percebi que o que parecia ter sido forçado em O homem do Norte reaparecia em Nosferatu (2025) – só posso supor que deliberadamente.

O filme abre com uma tônica indicativa de estranhamento: a trilha sonora sombria, vertida inicialmente em uma espécie de caixinha de música, a abertura de ritmo sonâmbulo e enigmático, a disrupção violenta da primeira aparição – quase inapreensível – da criatura, tudo apontava para uma nova obra genial e hermética de Robert Eggers. No entanto, depois que o título surge, somos arremessados em uma narrativa comezinha, verossímil e cansativamente entediante. Cenas de diálogos explicativos, apresentação das personagens e dos mecanismos da trama, concatenação linear do enredo etc. etc. Tudo muito bem executado, indiscutivelmente, mas tudo também perturbadoramente “normal”.

Murnau e Herzog, antecessores de Eggers nesse mito, só precisaram de duas ou três cenas para abandonar o cotidiano enfadonho da Alemanha e adentrar as montanhas sombrias da Transilvânia, chegando ao coração do horror de Nosferatu; Eggers, no entanto, nos comeu uns 30 minutos (ou mais) de filme. “Por quê?”, você pode estar se perguntando. Ora, porque o grande público de hoje em dia é incapaz de acompanhar uma história que não tenha a exata estrutura de uma novela ou de um comercial, aparentemente.

Apenas quando finalmente chegamos ao já canônico segmento da estalagem é que o que se esperaria de um “Egger’s Nosferatu” reaparece. Toda a sequência que vai da carruagem fantasmagórica ao sombrio castelo do Conde é absolutamente genial. Nesses momentos, Eggers se reafirma como pintor abstrato de imagens cinematográficas. O horror surge, acima de tudo, como atmosfera, como ruptura da estrutura visual e narrativa. Imagens desfocadas e bruxuleantes, ângulos tortuosos e expressivos, contornos obscurecidos, close-ups inesperados; a edição disruptiva, a montagem violenta e o uso absurdamente intenso do design de áudio fazem ressurgir a visceralidade possuída de A bruxa e O farol. O próprio monstro vampírico ganha novos contornos: seu enorme casaco de pele, suas feições de rasgo rústico e morto-vivo, suas vocalizações densas e guturais, tudo remete efetivamente à imagem de uma criatura talhada pela dor da eternidade e pelas gélidas montanhas romenas.

No entanto, esse sopro de horror abissal dura pouco (ou menos do que deveria), sendo sempre intercalado e eventualmente quase que substituído pela realidade – concreta e francamente desinteressante – do que se passa com as personagens em Wisborg, na Alemanha. Não me entendam mal, há ainda vários outros momentos de genialidade visceral aqui: as fantasmagóricas visitas noturnas, os momentos de possessão e delírio, as mortes surpreendetemente dessacralizadas; enfim, todo e qualquer imaginário brotado e tingido pela própria criatura é um deleite inegável de horror obtuso. O problema é que esses rasgos de brilhantismos são sempre entrecortados pelo pé no chão das cenas explicativas. E esse é o pecado cardinal de Nosferatu: acreditar que o centro dessa narrativa é o casal, seus amigos e os moradores da cidade. “Nosferatu”, esse mito cinematográfico, é a história abjeta de um monstro, suas formas e transformações, sua atmosfera opressiva, seu gosto de sangue, sombra e pestilência; são os ratos, as moscas, os lobos e os caixões cheios de terra negra; são os quartos a noite, as maldições, os espasmos sensuais possessivos e o navio cheio de morte.

Me parece também que o mal de Eggers foi acreditar que seu grande trunfo como diretor era sua capacidade de verossimilhança – o uso preciso do inglês arcaico e das línguas mortas, a recriação meticulosa da época e dos costumes –, quando, em verdade, o poder de sua voz reside justamente em sua capacidade de abstração e possessão narrativa.

Nesse novo remake, não há grandes expansões da mitologia da criatura. Isso está longe de ser um problema. Os beats da história também não são largamente alterados. Novamente: nada demais – a não ser que, claro, você, como muita gente fez, tenha assistido às outras versões da história imediatamente antes de ir ver essa nova, o que pode causar um senso de repetição (mas isso é problema seu, não do filme). O próprio Herzog fez basicamente a mesma coisa em 1979 e seu filme é absoluta e indiscutivelmente genial. No entanto, o que Herzog não fez, mas Eggers insistiu em fazer, foi tentar explicar melhor a história, preenchendo lacunas, expandindo diálogos, concatenando cenas. Como se fosse disso que Nosferatu carecia: lógica.

Há quem acredite que Max Schreck, o Nosferatu original, era um vampiro de verdade – o filme A sombra do vampiro (2000), com o próprio Willem Dafoe como Nosferatu, é uma brincadeira com essa ideia. Ninguém duvida de que Klaus Kinski, a criatura aterrorizante de Herzog, era, de fato, o Demônio. Nosferatu deveria ser um filme justamente sobre essa materialização de um horror sem forma e irracional, agressivo e sombrio, sufocante e hipnótico, e não sobre as pessoas que coabitam a tela com o monstro. Os “protagonistas” não são e nem nunca foram tão comoventes assim. Nisso, Eggers erra; e erra miseravelmente.

Aproveito a deixa e chamo atenção a esse novo elenco. Nicholas Hoult e Aaron Taylor-Johnson, quase sempre excelentes em papéis coadjuvantes, “existem” nesse filme; Lily-Rose Depp até tenta (e tenta até demais), mas não é nenhuma Isabelle Adjani; usar Ralph Ineson, o homem da voz mais sombria do cinema atual, como seu straightman talvez seja uma escolha impensada. Os destaques ficam mesmo com Willem Dafoe, numa releitura deliciosa do Van Helsing clássico, que mais se aproxima de uma espécie de Dr. Loomis (Halloween, 1978) ocultista do século XIX (com direito até ao icônico discurso “Death has come to your little town”). Simon McBurney, que coloca sua inegável semelhança física com o monstro real Roman Polanski a serviço de uma atuação perturbada e delirante, rivaliza – mas não ganha – com os equivalentes Reinfields do espetacular Dwight Frye (Drácula, 1931) e do não menos estranho Tom Waits (Drácula de Bram Stoker, 1992). E Bill Skarsgard, que não é nenhum Klaus Kinski (Porra, quem é?!) – mas que, para nossa alegria, também não tenta ser –, vem se provando uma das presenças mais desconcertantes atualmente nas telas; basta ver o quão macabra ficou sua versão de Pennywise em It (2017) e quão sinistro ele pode parecer simplesmente como “ser humano normal”, como vimos em Barbarian (2022). Seu Nosferatu, sem deixar de ter reverência pelos que vieram antes dele, tem algo de único e original, com sua silhueta esquelética mas imponente, seus laivos de carne lacerada ensanguentada e sua movimentação ora sonâmbula, ora disruptiva. É um monstro digno do epíteto: “O Insuportável ou O Ofensivo”.

Há, entre o clássico de Murnau e a reimaginação de Herzog, mais de 50 anos de história do Cinema. Entre Herzog e Eggers, quase outro meio século se esgarçou. No entanto, está claro: não foi tempo suficiente. Se havia alguém capaz de, hoje, realizar uma releitura digna e original de “Nosferatu”, esse alguém era o Eggers diretor de O farol – não o de O homem do Norte.

Com seu mais novo filme, como um personagem trágico clássico, Robert Eggers passa a ocupar o centro de uma perturbadora e, quem sabe, definitiva encruzilhada. De um lado, suas primeiras produções: independentes, experimentais, de um cinema pautado em abstração narrativa, atmosfera opressiva e hermetismo de ideias. De outro, bastante distinto, seus dois filmes subsequentes: narrativas muito mais obedientes, calcadas na linearidade do plot e na exposição clara das intenções das personagens; um cinema que se propõe mais tradicional, mercadológico e mainstream. O que virá mais adiante, o Inferno é que sabe. Quanto a mim, embora continue torcendo por um Eggers mais expressivo que explicativo, aprendi minha lição.

A expectativa é a mãe da decepção.


[1] https://www.theguardian.com/film/2022/apr/10/the-northman-director-robert-eggers-interview .


Joaquim Dantas e Juscelino Neco são responsáveis pelo Selvagem Podcast, disponível em todos os agregadores. Juscelino é autor de Em Perfeito EstadoReanimatorZumbis para ColorirMatadouro de Unicórnios e Parafusos, Zumbis e Monstros do Espaço. 


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