Por Joaquim Dantas
Se você me disser que não gostou e/ou não entendeu o brilhantismo disruptivo do melhor filme de horror de 2024 — com larguíssima vantagem —, Longlegs: Vínculo Mortal, eu diria que esse é só o seu atestado de ignorância mesmo. Mas se você me disser que não curtiu a mais recente investida de Oz Perkins no cinema de gênero, O Macaco (2025), eu consigo entender: você é uma vítima.
Mas deixa eu te falar porque é que esse troço funciona — e como funciona (!) — dentro de sua beligerante obsessão com a ideia de ser desconjuntado de propósito.
O Macaco mostra o contínuo amadurecimento de Perkins como um criador de imagens super estilizadas e narrativas quase intransponíveis. Em enxutíssimos 98 minutos, ele conta a história de Hal e Bill Shelburn, irmãos gêmeos idênticos mas radicalmente antagonistas. Hal é o caricatural nerd coitado, enquanto Bill é o proverbial “capeta em forma de guri”. De modo espelhado — que emula a construção da persona gêmea —, o filme é estruturado ao redor de dois períodos específicos na vida dos personagens.
Ainda na infância, os irmãos são pegos no meio de uma trama sinistra quando descobrem, dentre os cacarecos abandonados pelo pai ausente, um brinquedo maligno: um macaquinho autômato que toca um tamborzinho marcial. Notem que eu disse “maligno” e não “amaldiçoado”. É que não tem maldição nenhuma envolvida no processo; o troço já vem com mal embutido de fábrica mesmo — “como a vida” (“like life”), como diz na caixa do brinquedo. O procedimento do danado é o seguinte: você dá corda, ele toca o tarol e, depois da última pancada, alguém morre — e morre da maneira mais brutal e absurda possível.
É interessante notar como o texto, as escolhas lexicais mesmo do roteiro, apresenta pistas para o tema geral da peça. Chamo atenção para o uso recorrente da expressão “deadbeat”, que pode ser traduzida como “caloteiro” ou “exausto”, mas que, no filme, assume uma acepção alegórica dupla: é a “pancada morta” do tambor do macaco e — por homofonia — é a “batida paterna” (“dad beat”), que passa a desgraça hereditária de pai para filho.
Mas “quem” morre? Literalmente, qualquer um, exceto aquele que deu corda no macaco. É uma loteria assassina randomizada. Depois de “brincar” irresponsavelmente e de ver as terríveis consequências que o giro dessas engrenagens pode trazer, os irmãos decidem se livrar do macaquinho, jogando-o no fundo de um poço.
Corta para 25 anos depois. Reencontramos Hal, agora completamente separado de sua contraparte fraterna malevolente. O nerd versão adulta, um sujeito retraído e solitário, está no meio de sua visita anual com seu filho adolescente, Petey, quando a sombra mecânica do passado retorna para lhe atormentar. E aí desgraça corre solta!
Simples o bastante, certo? Um plot típico de filme B de horror dos anos 1980-1990. Não por acaso, o filme se baseia em um conto da famigerada máquina de datilografar humana e sumidade pop do terror oitentista, Stephen King. No entanto, em O Macaco, é apenas nesse nível de superfície que o “típico” opera. No âmago profundo dessa narrativa, o óbvio abandona completamente a jogada. E é dessa ruptura do provável que nasce a genialidade da peça.
O que Oz Perkins faz aqui, em termos de violação das estruturas estabelecidas dos gêneros, é algo verdadeiramente disruptivo. Mas essa não é sua primeira investida subversiva.
Ano passado, com Longlegs, o diretor já havia conjurado o inconjurável: e se a gente fizesse um filme de investigação policial, mas centrado ao redor de um caso ininvestigável? Repare bem: todos os elementos estão lá; no entanto, sua natureza e a estrutura que os integra é tão abstrata quanto radicalmente absurda. A investigadora excepcional possui também um passado sombrio, e acaba, de algum modo incompreensível, fazendo parte da trama que investiga; o assassino serial é, a um só passo, um ser de dimensões sadisticamente humanas e efetivamente sobrenaturais; as pistas se apresentam e se entrecruzam, mas apenas a partir de uma lógica que desobedece a qualquer razão ordinária. É como se O Silêncio dos Inocentes (1991) ou Se7en: Os Sete Crimes Capitais (1995) tivessem sido dirigidos por David Lynch ou Kiyoshi Kurosawa. Não é só um filme sobre possessão; é uma película, efetiva e metalinguisticamente, possuída.
Se, com Longlegs, Perkins fez um “filme policial possuído”, com O Macaco ele criou uma espécie de “comédia de horror do absurdo” — ou um “horror do absurdo cômico”. Ou ainda: uma comédia extravagante de horror e humor negro que, de propósito, desmantela tudo, tanto o cômico quanto o horrível. Que rufem os tambores sanguinolentos!
A premissa de um objeto maldito atormentando a vida de alguém não é exatamente nova. De brinquedos de criança a conversíveis vermelhos, de livros que querem possuir sua alma a caixas quebra-cabeça do Inferno, de televisões poltergeisticas a fitas VHS que te dão sete dias, quase todo tipo de objeto já virou antagonista cinematográfico. Isso sem falar nos espelhos, amuletos, relógios, tabuleiros Ouija... Porra, até máquina de passar roupa já virou “trambolho assassino”! Parece mesmo que o cinema de horror tem uma obsessão com essa série infinita de quinquilharias do mal.
Sendo assim, a ideia de um macaco articulado inanimado e com ambições sanguinárias não soa incongruente nesse horizonte de possibilidades. No entanto, se pararmos para pensar um pouquinho, também não soa lá muito menos ridícula ou estapafúrdia. E essa parece ter sido a exata linha de raciocínio do Perkins: não dá para levar a sério um negócio desses; tem que ser uma comédia — e das mais extravagantes.
Se fosse só isso, tudo bem. Embora seja muito difícil acertar a mão quando se trata de comédias de horror, existe sim um punhado delas que funciona lindamente, com variados graus de sucesso crítico e de bilheteria. Levando em conta a destreza e o apuro estéticos demonstrados por Perkins até aqui, é fácil imaginar O Macaco sendo um desses milagres do equilíbrio entre os tons sombrios e hilários. A questão é que, o todo perturbado Oz, de normal, não tem nem o formato do crânio.
Em O Macaco, o humor surge da contraposição e do choque — em vez da sobreposição ou articulação — entre os dois gêneros com os quais o filme trabalha. Trata-se de uma subversão dupla, deliberada e retroativa: a violação do ritmo cômico pela inserção violenta de imagens de horror; e a desarticulação do efeito horrendo através do uso cômico de uma violência extrema. Perkins dialoga não simplesmente com a tradição das comédias de horror, mas sim com uma formulação um tanto distinta: o humor do absurdo.
Para tentar esclarecer essa distinção, vamos a alguns exemplos clássicos. Uma Noite Alucinante 2 (1987) é uma comédia pastelão vertida e tingida por tom e atmosfera de um filme de horror tradicional. Um Lobisomem Americano em Londres (1981), por sua vez, transita e concatena cenas distintas, ora de humor cotidiano, ora de horror visceral. A Volta dos Mortos Vivos (1985) — assim como, em certo sentido, Re-animator: a Hora dos Mortos Vivos (1985) — é um filme de zumbi clássico, mas com personagens hilários. A Noite dos Arrepios (1986) é puramente uma paródia. Embora todos esses filmes trabalhem com momentos de choque absurdista, a narrativa do Perkins parece ter uma sensibilidade que não se alinha perfeitamente com a de nenhum deles.
Se eu tivesse que apontar para um exemplo claro na história do cinema de como O Macaco opera, eu diria: a cena do restaurante em Monty Python: O Sentido da Vida (1983), na qual um glutão, Mr. Creosote, come até literalmente explodir. Ninguém em sã consciência argumentaria que essa passagem se trata de uma cena de horror. No entanto, é inegável que ela é tão grotesca e desagradável quanto qualquer cena de Fome Animal (1992) — outro clássico absoluto do gênero. Da mesma forma, é esse mesmo imaginário horrendo e nauseante que impede que muitas pessoas percebam comicidade ali. Não existe “piada”. O cômico é o todo da cena — e ele nasce justamente do absurdo. Não que O Macaco seja tão grotesco quanto o filme dos Python, mas, em relação à violação dos gêneros, ele funciona mais ou menos da mesma maneira.
A outra comparação que me vem à mente — e que daria uma excelente sessão dupla com O Macaco — é mais óbvia e lúdica: Comboio do Terror (1986), o único filme oficialmente dirigido pelo próprio Rei dos Stephens. Para uma melhor experiência, siga dois passos básicos. Primeiro, resguarde as diferenças de estilo: Oz Perkins filma o macaquinho com a mesma elegância que o Carpenter captura o Plymouth Fury em Christine (1983); já King aponta a câmera para os caminhões do tal comboio com a precisão de um toxicômano de férias. Segundo, desconsidere a intenção por trás da execução: Perkins tem; King, é discutível. Feito isso, é inegável que há algo de profundamente interessante em assistir a uma comédia bizarra de horror junto com um filme de horror maravilhosamente bizarro em sua absoluta inaptidão. Eu tenho a séria impressão de que o que o Perkins fez foi adaptar não um conto, mas “esse” Stephen King mesmo, o diretor de um cinema desconjuntado. Ah, e ambos os filmes são sobre objetos inanimados malditos. Recomendo!
Em conclusão, acerca de O Macaco, não se assuste se você não se pegar rindo em muitos momentos dessa “comédia”. Também não se espante se o horror soar estranho demais para funcionar. Como eu disse antes, você é uma vítima nas mãos de um lunático. Perkins se armou para criar uma espécie de “comédia anti-cômica” de horror, em que o humor nasce justamente do absurdo subversivo dessa ideia. E, nesse sentido, o filme funciona como um brinquedinho de corda!
É de conhecimento geral que, depois de um tiro certeiro, os estúdios tendem a dar “carta branca” para o filme subsequente de seus cineastas — muito embora as cartas de hoje em dia não sejam lá assim tão brancas. Ou seja, essa bizarrice livre, subversiva e anticomercial que é O Macaco é resultado direto de Nicolas Cage mandando um “Hail, Satan” e dando uma piscadela gostosa no final de Longlegs.
Acima de tudo, o que mais me empolga nessa história toda é ver o louco correndo solto com a chave do hospício na mão. E o Perkins, que é um doido do mais alto calibre, sacou que o maníaco mais livre é também o que corre mais rápido! É assim que, surfando ainda nas longas pernas do seu sucesso anterior, em outubro desse ano, teremos a estreia de mais uma “viagem sombria” do diretor: Keeper.
E que venham mais e mais desses experimentos irresponsáveis! C’mon, baby, let the good times roll!!!
Joaquim Dantas é responsável pelo Selvagem Podcast, junto de Juscelino Neco, disponível em todos os agregadores.