Sonhar de olhos abertos

Um Cão Andaluz, o clássico filme de Luis Buñuel e Salvador Dalí pelos olhos do quadrinista Bruno Alves
21 de março de 2025 por
Sonhar de olhos abertos
Editora Veneta

Por Guilherme Ziggy


Es lástima que la estrella

no supiera fecundar tus senos

y que el pájaro de la lámpara de aceite

la picotease como a una cáscara de cacahuete

tus miradas y las mías dejaron en tu vientre

un signo futuro y luminoso de multiplicación.

Luis Buñuel[1]

 

O filme Um Cão Andaluz marca não apenas a estreia cinematográfica de Luis Buñuel, mas também uma das primeiras produções genuinamente surrealistas nas telas.[2] Para os surrealistas, o cinema era a “expressão máxima” do moderno – o poeta Benjamin Péret, por exemplo, era fascinado pelas obras de Charlie Chaplin, enquanto Robert Desnos mantinha uma coluna sobre o tema na imprensa francesa.

Nascido em Calanda, na Espanha, em 1900, Buñuel conheceu o catalão Salvador Dalí, quatro anos mais novo, em 1917, durante os anos em que ambos viveram na Residencia de Estudiantes em Madri.[3] Lá também morava o jovem poeta Federico García Lorca, que, anos mais tarde, seria assassinado pelas milícias franquistas durante a Guerra Civil Espanhola.

Ao se mudar para Paris, em 1925, o cineasta encontrou uma cidade em ebulição cultural. A força explosiva dadaísta do pós-guerra já dava sinais de esgotamento, e o Manifesto do Surrealismo, publicado por André Breton no ano anterior, estabelecia um novo horizonte artístico: a busca pelo maravilhoso, pelo inconsciente e pela subversão da lógica racional.

Buñuel passou a participar dos encontros do grupo surrealista no Café Cyrano, integrando-se rapidamente às atividades coletivas do movimento. Quatro anos depois, em 1929, Dalí também se muda para Paris e se junta ao círculo. Entre 1925 e 1929, retorna diversas vezes à Espanha, onde começa a escrever Um Cão Andaluz. O cineasta seguia uma regra clara: “Não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar ensejo a uma explicação racional, psicológica ou cultural”.[4]

Um Cão Andaluz nasceu como um livro de poemas que deveria ser publicado em 1927, sob o título Polismos. Já imersos no universo cinematográfico dos surrealistas, Buñuel e Dalí uniram forças, fundindo o fogo poético da imagem à busca pela mais realidade. Para Buñuel, o filme “nasceu do encontro dos meus sonhos com os sonhos de Dalí”.[5] Navalhas atravessam olhos, formigas percorrem as palmas das mãos e ações cotidianas se desdobram em gestos que oscilam entre o sonho e o pesadelo. Contra todas as expectativas, o filme foi bem recebido pelo público.

A estreia do filme foi organizada pelo próprio Luis Buñuel, com a ajuda de Man Ray e Louis Aragon. A sessão ocorreu em 6 de junho de 1929, no Studio des Ursulines, em Paris. Além do grupo surrealista, estavam presentes nomes como Pablo Picasso, Le Corbusier e Jean Cocteau. Durante a sessão, Buñuel permaneceu atrás da tela, operando um gramofone que tocava tangos argentinos.

O sucesso de Um cão andaluz o encorajou a realizar, no ano seguinte, A Idade do Ouro, novamente com a colaboração de Dalí no roteiro. Mais ambicioso e ainda mais provocador, o filme satiriza com ferocidade as instituições burguesas, o clero e os valores morais ocidentais.

Os caminhos de Buñuel e Dalí logo se distanciariam. Em 1934, Dalí foi expulso do movimento surrealista por divergências políticas com André Breton e começou uma aproximação com o fascismo. Buñuel, por sua vez, aderiu ao comunismo e, após um breve período nos Estados Unidos, de onde foi forçado a sair por suas convicções políticas, estabeleceu-se no México, onde seguiria sua brilhante carreira cinematográfica. 

As relações entre o surrealismo e os quadrinhos vêm de longa data. René Magritte, ainda na década de 1920, publicou pequenas historietas gráficas na revista La Révolution Surréaliste, que já valorizava a linguagem dos quadrinhos. Décadas depois, autores como Robert Benayoun e Franklin Rosemont se dedicariam a explorar essas conexões,[6] produzindo obras fundamentais sobre o tema. Nos anos 1960, o editor Éric Losfeld – que publicou diversos surrealistas – foi responsável por clássicos dos quadrinhos eróticos como Barbarella, Pravda e Valentina. No Brasil, Sergio Lima, principal nome do movimento surrealista no país, organizou a mostra “Comics: Exposição Internacional da Evolução da História em Quadrinhos”, realizada em 1965, durante a 8ª Bienal de São Paulo. 

É nesse vasto território, entre imagem e delírio, que se inscreve esta adaptação de Um Cão Andaluz. Trabalho de estreia do artista plástico e quadrinista Bruno Alves, o livro busca somar-se a essa constelação criativa, reabrindo o portal que liga o surrealismo ao imaginário gráfico: um movimento capaz de apontar as chaves de uma explicação para o inexplicável.


[1] Buñuel, Luis. Obra literaria. Introducción y notas de Agustín Sánchez Vidal. Zaragoza: Ediciones del Heraldo de Aragón, 1982, p. 136.

[2] Man Ray já havia realizado os curtas-metragens Emak Bakia (1926) e L’Étoile de mer (1928).

[3] Período de intensa efervescência literária em Madri, com tertúlias no Café de Pombo ao lado de Guillermo de Torre, Ramón Gómez de la Serna, que recitava suas greguerías, e outros ultraístas e anarquistas. Às vezes, até Jorge Luis Borges aparecia.

[4] Buñuel, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 151.

[5] Ibid. p. 135.

[6] Cf. Benayoun, Robert. Le Dessin animé après Walt Disney. Paris: Éditions du Terrain Vague, 1961; Rosemont, Franklin; Buhle, Paul (orgs.). Cultural Correspondence: Surrealism & Its Popular Accomplices. n. 10–11, edição dupla especial. Providence: Cultural Correspondence, 1979.


Guilherme Ziggy é poeta, tradutor e jornalista. É autor de Pequena passarela sobre o abismo (no prelo, 2026) e Consultas autônomas (2019). Como tradutor, assina Fantasmas da minha vida (2021), de Mark Fisher, e Antifa: o manual antifascista (2019), de Mark Bray. Mora em São Paulo.

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