Por Guilherme Ziggy
Es lástima que la estrella
no supiera fecundar tus senos
y que el pájaro de la lámpara de aceite
la picotease como a una cáscara de cacahuete
tus miradas y las mías dejaron en tu vientre
un signo futuro y luminoso de multiplicación.
Luis Buñuel[1]
O filme Um Cão Andaluz marca não apenas a estreia cinematográfica de Luis Buñuel, mas também uma das primeiras produções genuinamente surrealistas nas telas.[2] Para os surrealistas, o cinema era a “expressão máxima” do moderno – o poeta Benjamin Péret, por exemplo, era fascinado pelas obras de Charlie Chaplin, enquanto Robert Desnos mantinha uma coluna sobre o tema na imprensa francesa.
Nascido em Calanda, na Espanha, em 1900, Buñuel conheceu o catalão Salvador Dalí, quatro anos mais novo, em 1917, durante os anos em que ambos viveram na Residencia de Estudiantes em Madri.[3] Lá também morava o jovem poeta Federico García Lorca, que, anos mais tarde, seria assassinado pelas milícias franquistas durante a Guerra Civil Espanhola.
Ao se mudar para Paris, em 1925, o cineasta encontrou uma cidade em ebulição cultural. A força explosiva dadaísta do pós-guerra já dava sinais de esgotamento, e o Manifesto do Surrealismo, publicado por André Breton no ano anterior, estabelecia um novo horizonte artístico: a busca pelo maravilhoso, pelo inconsciente e pela subversão da lógica racional.
Buñuel passou a participar dos encontros do grupo surrealista no Café Cyrano, integrando-se rapidamente às atividades coletivas do movimento. Quatro anos depois, em 1929, Dalí também se muda para Paris e se junta ao círculo. Entre 1925 e 1929, retorna diversas vezes à Espanha, onde começa a escrever Um Cão Andaluz. O cineasta seguia uma regra clara: “Não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar ensejo a uma explicação racional, psicológica ou cultural”.[4]
Um Cão Andaluz nasceu como um livro de poemas que deveria ser publicado em 1927, sob o título Polismos. Já imersos no universo cinematográfico dos surrealistas, Buñuel e Dalí uniram forças, fundindo o fogo poético da imagem à busca pela mais realidade. Para Buñuel, o filme “nasceu do encontro dos meus sonhos com os sonhos de Dalí”.[5] Navalhas atravessam olhos, formigas percorrem as palmas das mãos e ações cotidianas se desdobram em gestos que oscilam entre o sonho e o pesadelo. Contra todas as expectativas, o filme foi bem recebido pelo público.
O sucesso de Um cão andaluz o encorajou a realizar, no ano seguinte, A Idade do Ouro, novamente com a colaboração de Dalí no roteiro. Mais ambicioso e ainda mais provocador, o filme satiriza com ferocidade as instituições burguesas, o clero e os valores morais ocidentais.
Os caminhos de Buñuel e Dalí logo se distanciariam. Em 1934, Dalí foi expulso do movimento surrealista por divergências políticas com André Breton e começou uma aproximação com o fascismo. Buñuel, por sua vez, aderiu ao comunismo e, após um breve período nos Estados Unidos, de onde foi forçado a sair por suas convicções políticas, estabeleceu-se no México, onde seguiria sua brilhante carreira cinematográfica.
As relações entre o surrealismo e os quadrinhos vêm de longa data. René Magritte, ainda na década de 1920, publicou pequenas historietas gráficas na revista La Révolution Surréaliste, que já valorizava a linguagem dos quadrinhos. Décadas depois, autores como Robert Benayoun e Franklin Rosemont se dedicariam a explorar essas conexões,[6] produzindo obras fundamentais sobre o tema. Nos anos 1960, o editor Éric Losfeld – que publicou diversos surrealistas – foi responsável por clássicos dos quadrinhos eróticos como Barbarella, Pravda e Valentina. No Brasil, Sergio Lima, principal nome do movimento surrealista no país, organizou a mostra “Comics: Exposição Internacional da Evolução da História em Quadrinhos”, realizada em 1965, durante a 8ª Bienal de São Paulo.
É nesse vasto território, entre imagem e delírio, que se inscreve esta adaptação de Um Cão Andaluz. Trabalho de estreia do artista plástico e quadrinista Bruno Alves, o livro busca somar-se a essa constelação criativa, reabrindo o portal que liga o surrealismo ao imaginário gráfico: um movimento capaz de apontar as chaves de uma explicação para o inexplicável.
[1] Buñuel, Luis. Obra literaria. Introducción y notas de Agustín Sánchez Vidal. Zaragoza: Ediciones del Heraldo de Aragón, 1982, p. 136.
[2] Man Ray já havia realizado os curtas-metragens Emak Bakia (1926) e L’Étoile de mer (1928).
[3] Período de intensa efervescência literária em Madri, com tertúlias no Café de Pombo ao lado de Guillermo de Torre, Ramón Gómez de la Serna, que recitava suas greguerías, e outros ultraístas e anarquistas. Às vezes, até Jorge Luis Borges aparecia.
[4] Buñuel, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 151.
[5] Ibid. p. 135.
[6] Cf. Benayoun, Robert. Le Dessin animé après Walt Disney. Paris: Éditions du Terrain Vague, 1961; Rosemont, Franklin; Buhle, Paul (orgs.). Cultural Correspondence: Surrealism & Its Popular Accomplices. n. 10–11, edição dupla especial. Providence: Cultural Correspondence, 1979.
Guilherme Ziggy é poeta, tradutor e jornalista. É autor de Pequena passarela sobre o abismo (no prelo, 2026) e Consultas autônomas (2019). Como tradutor, assina Fantasmas da minha vida (2021), de Mark Fisher, e Antifa: o manual antifascista (2019), de Mark Bray. Mora em São Paulo.