Peito de aço e coração de sabiá: Exú na Avenida Paulista

Na Marcha para Exú, a Avenida Paulista virou encruza de fé, música e feminismo, onde pombagiras e exus desafiaram interditos e celebraram sua força
20 de março de 2025 por
Peito de aço e coração de sabiá: Exú na Avenida Paulista
Editora Veneta

Por Silvana Jeha


A Marcha para Exú no domingo dia 17 de agosto foi um acontecimento na cidade de São Paulo. Tinha milhares de pessoas de tudo quanto é terreiro entupindo a Avenida Paulista naquela encruza que é o trecho entre o Trianon e o MASP. Dentro do Museu até a bailarina do Degas deve ter rodado a saia.

Se no Candomblé originalmente Exú é Orixá, nas Umbandas (e mesmo em muitos Candomblés), ele se torna guia, linha, falange, alinhada com as pombagiras, as ciganas e os malandros. E existe centenas deles e delas: Seu Tranca Rua, Seu Zé Pilintra, Seu Tiriri, Maria Padilha, Maria Molambo, Sete Saias...

SÃO PAULO (SP) - Devotos de religiões de matriz africana participam da terceira marcha para Exu, na Avenida Paulista. Foto por Fraga Alves.

Sobre um caminhão de som, que também acondicionava as doações de alimentos para caridade, diversos sacerdotes e filhos de santo se revezavam cantando pontos e exaltando todas as entidades exusíacas. Duas moças vestidas com toda pompa cantaram para Maria Mulambo. Antigamente a Maria Mulambo dos terreiros nos quais eu ia, não vinha tão arrumada quanto a Maria Padilha. Ela era justamente a mulher molambenta, aquela que todos desprezavam, mas que enfrentava toda a sociedade com escárnio e desdém. Ekedy Joyce cantou para Mulambo o belíssimo ponto Madrugada:

Madrugada êêê
Madrugada aaa
Andando pela estrada
Passei pela encruzilhada
Sereno não me molhava
Perfume que me exalava
Silêncio que me assustava
Foi quando ela apareceu
Tão linda formosa e bela
Me olhando dizia assim
Sou eu Maria Mulambo
Senhora de Sr. Lúcifer
Quem me quiser bem, boa sorte.
Quem me quiser mal, boa morte
Escolhe o que tu quiser

Lucifer, não é o mal nessa canção, Lucifer é uma energia, sobre a qual eu não tenho repertório pra falar. Aliás mal e o bem entre os Exús têm outros significados. Logo, Isa de Mulambo cantou para sua moça. Ela estava vestida de roxo e preto, de capa e chapéu, com uma roupa super elaborada, muito próxima das roupas das ciganas:

Abre a roda e deixa a Mulambo trabalhar
Ela tem, ela tem peito de aço
Ela tem peito de aço e o coração de sábia

Sob a coragem e o enfrentamento, existe amor. A segunda canção, eu não conhecia. Há uma grande relação entre as pombagiras e as prostitutas. Isa foi direto ao ponto no trecho que consegui guardar, quando o assunto é o domínio da própria sexualidade e do feitiço:

tem também a puta livre que não se curva pra fudido (...)
 a mulher da bruxaria hoje em dia destemida
mas ainda dizem que é putaria

Na avenida, afinal, os “cavalos” das pombagiras estavam cantando para nós das Umbandas e Candomblés - e para as famílias incautas que faziam seu passeio dominical na Avenida - sobre as mulheres que enfrentam os interditos femininos, aqueles que autoras como Silvia Federici estudou em Calibã e a Bruxa, Marlyse Meyer no genial Maria Padilha e toda a sua quadrilha e recentemente as personagens da mexicana Dahlia de La Cerda em seus contos de Cadelas de Aluguel.

Aqui na Veneta, eu conto a história de Aurora Cursino no livro Aurora: Memórias e delírios de uma mulher da vida. Em meu Uma História da Tatuagem no Brasil, falo um pouco da puta Beatriz Barbosa, que numa entrevista declarou “nenhum homem nunca bateu em mim”.  Na história em quadrinhos Jeanine, Matthias Picard conta a história da Sueca, sua amiga prostituta ativista de 64 anos. E Monique Prada conta sua própria história e de suas companheiras de luta em Putafeminista.

Enfim, nós pombagiras estamos aqui para perturbar a ordem patriarcal. Quando eu e minhas amigas Cacá e Cris saíamos da Marcha encontramos entre os camelôs temáticos da marcha a bonequeira Ana Julia que tinha preparado uma série de imagens de pombagiras e exus para a ocasião. Eu comprei uma Maria Padilha com cigarro na boca e com uma navalha na mão que coloquei entre os meus livros de putas e feministas. Uma artista essa mulher. Ela portava uma bolsa cheia de apliques coloridos e uma série de ratos de borracha costurados. Ela me disse: “esses ratos são uma família”. Nós pombagiras também.


Silvana Jeha é doutora em história pela PUC-Rio. Pesquisa e escreve sobre populações marginalizadas do Brasil como artistas internos de manicômios, indígenas, escravizados, marinheiros, prostitutas e suas culturas como a tatuagem. É autora de Uma história da tatuagem no Brasil (Veneta, 2019) e coautora, com Joel Birman, de Aurora: memórias e delírios de uma mulher da vida (Veneta, 2022). Está preparando um livro sobre Arthur Bispo do Rosário.


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