Por Rogério de Campos
Aos 35 anos, Kiefer Sutherland tinha quase vinte anos de carreira como ator de cinema, mas seu verbete em qualquer enciclopédia começaria com a informação de que era filho de Donald Sutherland (1935-2024). Foi quando, em 2001, estreou a série 24 horas. Hoje, apesar de seus clássicos filmes com diretores como Federico Fellini, Robert Altman e Bernardo Bertolucci, Donald Sutherland talvez apareça nas listas de celebridades como pai de Kiefer (ou de Jack Bauer).
Mas, para além do cinema, famoso mesmo foi o avô de Kiefer (e sogro de Donald). Pelo menos no Canadá. Tommy Douglas (pai da atriz Shirley Douglas, mãe de Kiefer) foi por várias décadas o mais célebre líder socialista do país. Em 2004, um milhão e duzentas mil pessoas votaram em uma grande enquete realizada pela CBC Television e elegeram Tommy Douglas o “maior canadense de todos os tempos” (bem à frente, por exemplo, de Graham Bell, Louis Riel, alguns prêmios Nobel ou celebridades pop como Neil Young, Avril Lavigne e Jim Carrey).
A atriz Shirley Douglas (1934-2020), aqui à época em que ainda era casada com Donald Sutherland (na foto, com Kiefer no colo), manteve a tradição da família e por toda a vida foi bem ativa politicamente. Participou com Donald Sutherland das campanhas pelos direitos civis nos Estados Unidos e contra a Guerra do Vietnã. Nessa época, formou o grupo Friends of the Black Panthers e acabou presa em 1969 quando comprava armas para o grupo. Por causa disso, o governo dos Estados Unidos retirou a permissão para que ela trabalhasse no país, na prática expulsando-a para o Canadá.
As intervenções de Tommy Douglas no parlamento canadense contêm joias de concisão. Algumas das minhas preferidas:
“Aqueles que desejam queimar livros ou têm medo das ideias contidas entre as capas ou não têm coragem de defender as opiniões que eles próprios professam ter.”
“A melhor maneira de defender a democracia é fazê-la funcionar.”
“Creio que o ilustre deputado pode ser um bom advogado de corporações, mas está se confundindo muito em história. O sistema capitalista não produziu a era das máquinas; a era das máquinas produziu o sistema capitalista. A prosperidade material de que o mundo desfrutou nos últimos setenta e cinco ou cem anos deveu-se à introdução da energia a vapor, depois a energia elétrica e o motor de combustão interna. O sistema capitalista ou o sistema de livre iniciativa — os termos são sinônimos e intercambiáveis — foi o produto da era das máquinas. O sistema capitalista não produziu a era das máquinas.”
E minha favorita:
“O fascismo começa quando a classe dominante, temendo que o povo use sua democracia política para obter democracia econômica, começa a destruir a democracia política para manter seu poder de exploração e privilégio.”
Dizem que o segredo do sucesso de Tommy Douglas era sua habilidade em fazer as pessoas darem risada. Seus discursos eram prenhes de humor. Uma das histórias que ele chegou a contar no parlamento canadense ficou famosa com o nome de Ratolândia (Mouseland). Em 2020, a história ganhou uma versão em livro ilustrado publicado em 2022 pelo Oh!, selo infanto-juvenil da Veneta. Agora, veja só, está na lista de livros aprovados no PNLD 2023. Aqui uma tradução:
Essa é a história de um lugar chamado Ratolândia. Um lugar onde os ratinhos viviam, brincavam, comiam e morriam. E viviam de forma muito parecida com a que você e eu vivemos. Eles até tinham um Parlamento. E a cada quatro anos tinham uma eleição. Costumavam ir a pé às urnas e votar. Alguns deles até pegavam carona até as urnas. E também pegavam carona pelos quatro anos seguintes. Assim como você e eu. E toda vez no dia da eleição todos os ratinhos iam às urnas e elegiam um governo. Um governo formado por gatos grandes, gordos e pretos. Agora, se você acha estranho que ratos elejam um governo formado por gatos, basta olhar para a história do Canadá nos últimos noventa anos e talvez você perceba que eles não eram mais estúpidos do que nós. Mas não estou dizendo nada contra os gatos. Eles eram bons sujeitos. Eles conduziam seu governo com dignidade. Eles aprovaram boas leis — isto é, leis que eram boas para os gatos. Mas as leis que eram boas para os gatos não eram muito boas para os ratos. Uma das leis dizia que as entradas das tocas de rato tinham que ser grandes o suficiente para um gato conseguir enfiar a pata. Outra lei dizia que os ratos só podiam se mover a certas velocidades — para que um gato pudesse tomar seu café da manhã sem muito esforço físico. Todas as leis eram boas. Para os gatos. Mas, ah, elas eram duras com os ratos. E a vida estava ficando cada vez mais difícil. E quando os ratos não aguentaram mais, decidiram que algo precisava ser feito. Então, foram em massa às urnas. Tiraram os gatos pretos. Colocaram os gatos brancos, que tinham feito uma campanha fantástica. Disseram: "Tudo o que Ratolândia precisa é de mais visão". Disseram: "O problema com Ratolândia são aquelas tocas de rato redondas que temos. Se nos elegerem, criaremos tocas de rato quadradas". E assim fizeram. E as tocas de rato quadradas eram duas vezes maiores que as redondas, e agora o gato conseguia enfiar as duas patas. E a vida estava mais difícil do que nunca. E quando não aguentaram mais, tiraram os gatos brancos e colocaram os pretos de volta. Depois, voltaram para os gatos brancos. Depois, para os gatos pretos. Chegaram a tentar metade gatos pretos e metade gatos brancos. E chamaram isso de coalizão. Chegaram a ter um governo formado por gatos com pintas: eram gatos que tentavam fazer barulho como um rato, mas comiam como um gato. Vejam, meus amigos, o problema não era a cor do gato. O problema era que eles eram gatos. E, por serem gatos, naturalmente cuidavam de gatos em vez de ratos. De repente, apareceu um ratinho que teve uma ideia. Meus amigos, cuidado com o ratinho com uma ideia. E esse ratinho disse aos outros ratos: "Olhem, rapazes, por que continuamos elegendo um governo feito de gatos? Por que não elegemos um governo feito de ratos?". "Ah", disseram eles, "ele é um comunista. Prendam-no!" Então, o prenderam. Mas quero lembrá-lo: você pode prender um rato ou um homem, mas não pode prender uma ideia!
Ratolândia, baseada numa das fábulas de Tommy Douglas, está na lista de livros aprovados no PNLD 2023
Neste vídeo, Kiefer Sutherland apresenta a história de Ratolândia contada por seu avô:
Rogério de Campos é autor de livros como Um Santo em Marte, O Segredo da Sedução do Inocente e Revanchismo. E é também autor de uma elogiada tradução do texto integral de Genesis, para a HQ de Robert Crumb.