Por Diego Aguiar Vieira
“Sinto que o Transrealismo é a única percepção válida na literatura atualmente. O Transrealismo escreve sobre percepções imediatas de um jeito fantástico. Qualquer literatura que não seja sobre a realidade atual é enervante e vazia. Mas o gênero de realismo franco e direto já se consumiu por completo. Quem precisa de mais romances realistas assim?”
Palavras de Rudy Rucker, o escritor e matemático, de quem treze dos vinte e dois romances são transrealistas, como definido pelo próprio autor (Rudy Rucker's Timeline of Transreal Novels). Rucker é, primordialmente, um escritor de ficção científica e seus romances quase sempre passam por essa seara. William Gibson o chama de um tesouro literário. Há quem o compare a Thomas Pynchon.
A obra de Rucker, infelizmente, segue praticamente inédita no Brasil, mas é possível notar sua influência em diversos autores, como o próprio Alan Moore, cuja obra, ao contrário, pouco navegou pela autobiografia, mas pode ser encontrada quase em sua totalidade vertida para o português. Quando se inseriu como personagem em seus trabalhos, como Rucker, Moore tinha motivos para além da autocelebração masturbatória - o que parece ser o caso da grande maioria dos autores que navegam pela chamada autoficção.
Em A Voz do Fogo, por exemplo, Moore se aproveita da própria temática do livro, feito a partir do ponto de vista mágico de uma dúzia de vítimas da História de sua cidade-natal, Northampton, para se incluir na narrativa, como a deflagração de um feitiço. Ambientado em 1995, nos dias que antecedem seu aniversário de quarenta e dois anos, quando faria a apresentação de The Birth Caul, o autor nos conduz por um passeio místico pelas ruas de Northampton, a exemplo daquele feito em Londres pelo médico Gull e pelo cocheiro Netley, no quarto capítulo de Do Inferno.
Um ano depois, Moore voltaria a aparecer em duas de suas histórias em quadrinhos: ambas relacionadas à obra sobre Jack, o Estripador. A primeira, A dança dos apanhadores de gaivota, serve como um último apêndice para o longo trabalho de produção de Do Inferno, com o autor oferecendo uma última perspectiva sobre a pesquisa feita para a HQ. Nela, Moore aparece junto com o ilustrador Eddie Campbell, contando não apenas sobre as inspirações, mas também sobre as próprias andanças pelos caminhos do assassino e suas vítimas, além de uma visita a um bar tradicional de Londres, frequentado por duas das vítimas do estripador, e que, no presente, servia como um local de striptease que reunia toda sorte de necroturistas.
No mesmo ano, na coletânea A Vida Secreta de Londres, Moore se utilizou da mesma experiência para recontar a experiência, desta vez em uma história toda relatada em primeira pessoa. Eu Continuo Voltando, ilustrada por Oscar Zárate, ao contrário de A dança dos apanhadores de gaivotas, não é um exercício bibliográfico, mas uma experiência ficcional que não tem pudores do horror que provoca. O narrador, que é claramente o autor, aos poucos vai se desfazendo, sendo substituído pelo próprio Jack, o Estripador, num exercício narrativo que faz jus à própria diligência meticulosa dos assassinatos, em que o homem, Alan Moore, rapidamente é devorado pelo espírito psicopata, que passa a ditar os rumos da história com crueldade.
Antes e depois disso, o autor já figurara em diversas histórias, próprias e de amigos: relatara a morte de um amigo de infância (A True Story) no zine Myra, de Myra Hancock; mostrou sua reação diante dos ataques do 11 de setembro de 2001 (“This is Information” (2001) by Alan Moore and Melinda Gebbie – @cv-zedricdimalanta no Tumblr); foi um personagem coadjuvante em Unearthing, a biografia mágica e psicogeográfica que escreveu sobre o amigo Steve Moore; e até ganhou uma pequena biografia em quadrinhos em um dos capítulos de Alec, longa saga de Eddie Campbell. Mas nada se compara com a chegada de Alma Warren, uma das protagonistas de seu magnum opus, Jerusalém.
Jerusalém, como Ulysses, de James Joyce, busca reencenar uma cidade que não existe mais - ou que está em vias de deixar de existir. Como Joyce, Moore percorre as ruas de sua cidade e torna mitológico o que era cotidiano. A Dublin de Joyce, assim como a Northampton de Moore, permanecem de pé, são visitáveis e reconhecíveis: os pontos turísticos, as ruas, todas continuam lá. Mas a grande maioria das pessoas não.
Em outra ocasião já falei bastante sobre o exercício psicogeográfico feito por Moore - no caso, em A Voz do Fogo - e o processo é bastante semelhante em Jerusalém. A diferença é que, enquanto no primeiro, Moore está preocupado apenas em investigar a cidade onde vive, seus fantasmas e esqueletos no armário, com Jerusalém ele parece seguir a máxima de Alejandro Jodorowsky, em sua obra psicogenealógica, Quando Teresa brigou com Deus, tornando os elos familiares em estrelas, vidas em odisseias mitológicas e temores em batalhas espirituais.
A artista plástica Alma Warren, a contraparte literária de Alan Moore em Jerusalém, compartilha com o autor várias características, como a data de nascimento e um irmão chamado Michael, que quase morreu engasgado aos três anos de idade, além de toda uma bela árvore genealógica da classe trabalhadora. Ambos também gozam da amizade de infância de um poeta (Benjamin Perrit, em Jerusalém, Dominic Allard, na vida real), cuja irmã morreu em um acidente de moto quando eles eram crianças.

Alan e seu irmão mais novo, Mike, um dos protagonistas de Jerusalém.
Todas essas pessoas, reais e ficcionais, cresceram nos Boroughs, um bairro da classe trabalhadora de Northampton. Brevemente mencionado no último capítulo de A Voz do Fogo, o bairro dá título ao primeiro livro de Jerusalém e, por que não? Corpo ao livro como um todo.
Nos últimos tempos, por conta de problemas de locomoção, Moore tem afirmado em entrevistas que pouco sai de casa - mas ao longo de sua vida, a verdade é que pouquíssimas vezes saiu de seu bairro ou mesmo da cidade: frequentava Londres com alguma frequência até a morte de seu amigo e mentor, Steve Moore; na adolescência viajou para a meca dos maconheiros, Amsterdã; no auge da fama, nos anos 1980, viajou aos EUA para alguns eventos de quadrinhos e, quando já estava se cansando de tudo isso, para Angoulême, só para ouvir de alguém do alto escalão da DC/Warner que bons eram os tempos em que os artistas que trabalhavam para eles não recebiam tanta atenção (nem dividendos). Como Moore, Alma Warren também se cansou de ver seu talento ser explorado por empresas e corporações parasíticas, e, também como Alan, Alma não tem pudores nem papas na língua para expressar seu descontentamento.
O primeiro livro, Os Boroughs, se preocupa com muitos aspectos da vida no bairro, composto pela classe trabalhadora de Northampton. Nesse aspecto, Alma e sua família se fazem sempre presentes, mas a própria Alma só aparece brevemente no prólogo, Obra em Andamento, e depois, no último capítulo, Engasgando com um Tune. Primeiro, no prólogo, Alma aparece como uma criança de seis anos, em 1959, depois aparece como uma adulta, em 2005, aos 52 anos.

Bill Drummond, da banda KLF, é um dos amigos de Alan Moore que aparecem em Jerusalém.
Em comum com a vida de Moore, as duas datas marcam momentos em que seu irmão, Mike, quase faleceu - primeiro com uma pastilha pra tosse, depois queimado e sufocado por ácido em seu local de trabalho. Estes fatos são importantes para deixar claro que o autor está interessado em criar um romance social, mas que também não planeja se afastar do mundo mágico e fantástico que sempre cercou sua obra - e, conforme observamos, sua própria vida.
O trabalho braçal de Mick faz parte da tradição de uma família que nunca teve pudores em arregaçar as mangas e colocar-se ao trabalho. Exceto quando não queria. Aí, ninguém podia contê-los. Quando os irmãos se encontram em A Voz do Fogo, contam a história de um tio perneta, Chick, que preferia sempre o lado mais fácil da vida; em Jerusalém conhecemos outros parentes da família: a tia Thursa, que saia pelas ruas tocando seu acordeom durante a 2ª Guerra Mundial; além de Ginger Vernall, ou Ginger Vernon, o bisavô de Alma (e Alan), que preferiu beber até a morte a se tornar um sóbrio empreendedor - a única condição imposta para que conseguisse um certo trabalho era que abandonasse a garrafa e (na visão de seu/sua neto/neta) seus princípios.

John “Snowy” Vernall, bisavô de Alma, é inspirado em Thomas John Vernon, bisavô de Alan Moore.
Apesar de suas diferenças, todos, os Moore e os Warren, se encontram igualmente presos ao Boroughs. Há, no entanto, algo de que a família enfim se torna livre: a doença do tempo. Pois Jerusalém, assim como o gigantesco Contra o Dia, de Thomas Pynchon, é acima de tudo uma receita para pôr fim aos tormentos do relógio.
Em Light of thy Countenance, Moore avisa a partir do ponto de vista de uma personagem que é a personificação da irrealidade televisiva: “Os flocos de tempo de imagens estilhaçadas giram em órbitas, dançando como fitas pelo vazio cinza e nacarado, fora de tudo, pois eu não sou como vocês: um escravo do tempo. O tempo, para mim, é uma joia, fractal e infinitamente facetada por momentos que podem ser rolados entre o polegar e o dedo de um deus, de modo que a luz se reflita novamente em cada face, cada momento, assim, revisitado.”

Moore quando era adolescente.
Aos leitores de velha-guarda da obra de Moore, não é surpresa encontrar em suas páginas alguém que se atreva a violar as leis do espaço-tempo com a mesma facilidade com que um gato desfaz os bem-cuidados elos de um tricô. De aventuras de Dr. Who, a toda uma fase na 2000 AD, com as séries Future Shocks e Twisted Times, passando pelo Doutor Manhattan, de Watchmen, e as considerações filosóficas do doutor William Gull, em Do Inferno, a subversão do tempo sempre esteve presente. Sendo assim, nada mais natural que ao conduzir sua longa saga familiar em Jerusalém, fosse incluída na miríade de mitos, lendas e invencionices cartográficas do autor, também o seu desdém pela ditadura de Cronos.

Golden Lion, um pub onde acontece algumas das cenas de Jerusalém.
Enquanto o primeiro livro, como Ulysses, oferece um passeio pelas ruas de Northampton, o segundo volume, Almumana, praticamente adota a narrativa de um livro de aventuras infantis, do tipo que mais de uma vez o autor admitiu que não só lia durante a infância, como fazia questão de ler para as filhas e, durante a pandemia, passou a ler pelo telefone para seus netos. O irmão de Alma/Alan se junta a um grupo de crianças (ou fantasmas-crianças de adultos que preferiam momentos mais felizes de suas vidas) que rasga o Boroughs de uma ponta a outra do tempo, decifrando mistérios, aprontando pegadinhas, fugindo de encrencas (e criando outras). Tudo isso enquanto Mick sufoca com sua pastilha e, mais tarde, se recorda após sua segunda experiência de quase morte.
É apenas no terceiro livro, O Inquérito de Vernall, no capítulo Uma Manhã Fria e Gelada, que finalmente Moore nos joga dentro de sua cabeça. Ou melhor, da de Alma. No capítulo, não somos apresentados a uma autobiografia, mas certamente somos conduzidos em uma autocartografia. Desde o despertar, tomado por baseados gigantes (e a explicação para que sejam de tal tamanho as lendárias parangas apertadas pelo autor e orgulhosamente exibida em entrevistas conduzidas na sua sala), passando por pequenos rituais de banho, a escolha inusitada de seu excêntrico guarda-roupa, e até interagindo com uma série de figuras da cidade, incluindo o ator Robert Goodman, de Game of Thrones - que também interpretou Steve Moore na adaptação fotográfica de Unearthing, feita por Mitch Jenkins.

Robert Goodman, ator em filmes e séries como Game of Thrones, Um Peixe Chamado Wanda, Gangues de Nova York e A Liga Extraordinária, foi também roadie da banda Bauhaus. E é um dos protagonistas de Jerusalém.
É quase como, ao nos conduzir para sua cidade, seu bairro e, por fim, sua casa, Moore ficasse tímido diante das câmeras. Ainda que se exiba pavoneantemente, o autor, assim como sua contraparte literária, não quer o centro da ribalta. Tão logo se põe em destaque, tão logo se apresente como a personagem que irá costurar todos os pontos da narrativa a ponto de criar uma obra de arte sobre ela - uma exposição para Alma, o livro que temos em mãos para Alan -, o autor abandone a luz do refletor, nos deixando apenas com suas sombras.
Diego Aguiar Vieira é escritor, tradutor e editor. Mestre em Comunicação, Cultura e Educação em Periferias Urbanas pela FEBF-UERJ, atua na interseção entre literatura de horror, crítica social e experimentação narrativa. Traduziu obras de H. P. Lovecraft, Ambrose Bierce e James Joyce, entre outros. É autor dos álbuns Pássaros Artificiais, em parceria com Antonio Eder, e Crônicas de Calavera: Memento Mori, com João Ferreira. Seu livro O Apocalipse Amarelo - Uma Torre para Cthulhu (Avec Editora) foi vencedor do Prêmio Aberst Rubens Lucchetti de Melhor Narrativa Longa de Terror em 2024. Seu novo livro, O Apocalipse Amarelo - Os Imundos de Shub-Niggurath, se encontra em pré-venda.
