Onze pistas para conhecer o jazz sul-africano

Do apartheid à liberdade — a trilha sonora de uma revolução
10 de julho de 2025 por
Onze pistas para conhecer o jazz sul-africano
Editora Veneta

Por Rogério de Campos


“Não há nada que mostre de modo tão intenso o ânimo dos africanos em se comunicar uns com os outros como o seu amor pela música e pelo ritmo. Na cultura africana, a música se encon­tra presente em todos os estados emocionais”. Assim começa um dos textos de Steve Biko no livro Escrevo o que Eu Quero. “Para os africanos a música e o ritmo não eram um luxo, mas parte integrante de nosso modo de nos comunicarmos. Qualquer sofrimento que suportássemos tornava-se muito mais real por meio do canto e do ritmo”.

A música teve especial importância para o movimento da Consciência Negra, liderado por Biko. Vários músicos se envolveram com o movimento. Alguns, como os Malombo Jazz Makers, chegaram a viajar pelo país junto com Biko. Biko chegou a citar James Brown em um de seus textos: “Fale al­to! Sou negro e tenho orgulho de ser negro!” (“Say it Loud – I’m black and I’m proud”).

Já nas primeiras décadas do século XX, o jazz norte-americano foi adotado pelas camadas da população negra urbanizada como uma forma de escapar por instantes da realidade daquela África do Sul dominada pelos colonialistas brancos. Os Estados Unidos eram o país do linchamento de negros, do sul segregado e outros tantos horrores racistas, mas era também o país de nobres como Duke Ellington e Count Basie, e a imagem elegante de músicos como eles era inspiradora.

Por anos, o objetivo pareceu ser copiar os famosos artistas afro-americanos tanto quanto possível, não só musicalmente, mas também no visual. Aos poucos, porém, os sons africanos começaram a se misturar com tudo aquilo e naqueles bares começou a surgir um jazz que tinha personalidade distinta. O grupo que talvez melhor simbolize esse novo momento surge no final dos anos 1950: o The Jazz Epistles, formado pelo pianista Dollar Brand (Abdullah Ibrahim), Kippie Moeketsi (sax), Hugh Masekela (trompete), Jonas Gwangwa (trombone) e Makaya Ntshoko (bateria). O próprio Abdullah Ibrahim dá a explicação para o impacto que teve o grupo:

“A chave foi tocar nossa própria música. E o Kippie [Moeketsi] foi a força motriz, dizendo que isso era uma afirmação da nossa cultura e tradição. Em algumas composições ele injetou um pouco da música tradicional dançante”.[1]

Essa nova música do Jazz Epistles, do The Blue Notes e outros músicos articulava um senso de comunidade, levantava a autoestima e expressava sentimentos daquela população vivendo sob o jugo da minoria branca. Mais ainda: aquele cosmopolitismo negro parecia levar às ideias panafricanas, pelo menos aos olhos da paranoica repressão fascista (mas, como se diz, às vezes paranoicos têm inimigos reais). O regime conseguia lidar com a música tradicional africana, mas aquela música negra urbana era um desafio para a visão racista de qual deveria ser o lugar do negro na sociedade sul-africana (no Brasil, vimos algo parecido com o samba, a soul music, o hip hop, o funk...).

Talvez por entender isso, o regime do Apartheid, desde que foi implantado em 1948, fez um combate sem trégua contra o jazz sul-africano. Derrubou bairros inteiros onde havia bares que tocavam jazz, proibiu não apenas as bandas miscigenadas, mas também plateias miscigenadas. Cada avanço da repressão política (depois, por exemplo, do massacre de Sharperville, em 1960, ou depois do massacre de Soweto e o assassinato de Steve Biko, em 1976/77) foi acompanhado de um aumento da perseguição aos artistas. Muitos dos melhores talentos tiveram que deixar o país. Quem ficou sofreu todo tipo de pressão para ser silenciado. Kippie Moeketsi, um dos principais nomes na história do jazz sul-africano, teve seu instrumento confiscado e passou vários anos sem permissão para trabalhar.

No início dos 1970, os Malombo Jazz Makers e os Freedom’s Children, o mais importante grupo branco de rock progressivo do país, bolaram uma maneira de driblar a proibição de negros e brancos tocarem juntos: entraram no palco do Durban City Hall com máscaras de esqueleto, os braços e as mãos pintadas com tinta florescente. Ramsay Mackay, líder dos Freedom’s Children, conta que foi um momento tenso e hilário. “Mas no meio dessa maluquice, Lucky Ranku, guitarrista dos Malombo, virou para mim com lágrimas escorrendo por trás da máscara e disse: ‘eu só posso tocar no meu próprio país vestido de assombração’”[2].

Uma demonstração do quão terrível foi a repressão do regime contra a música na África do Sul é o florescimento que o jazz sul-africano teve depois do fim do Apartheid. A lista a seguir é bem subjetiva e longe de mim me pretender um especialista no tema. Mas espero que inspire os leitores a outras descobertas na África do Sul.

The Blue Notes


Essa gravação de 1964 mostra o The Blue Notes se apresentando no festival de jazz de Antibes, no sul da França, logo após partirem para o exílio. A situação do Blue Notes na África do Sul era especialmente precária, por ser uma mixed-race band. O pianista, e líder da banda, Chris McGregor era branco. Isso fazia eles serem muito visados pela polícia do regime do Apartheid.

Se a gravação demonstra o nível de excelência que os Blue Notes haviam atingido no domínio da gramática do jazz norte-americano, o que vem nos anos seguintes é o que nos faz ver o Blue Notes não como uma banda, mas como um manancial de maravilhas sonoras. Chris McGregor, Dudu Pukwana (sax), Mongezi Feza (trompete), Nikele Moyake (sax), Johnny Dyani (baixo), Louis Moholo-Moholo (bateria) e os músicos em torno deles seguiram reinventando o Blue Notes, às vezes com outros nomes (Brotherhood of Breath, Chris McGregor Group, South African Exiles...), do free jazz ao afro-rock (ouça a banda Assagai, formada por Pukwana, Feza e Moholo no início dos anos 1970).

Abdullah Ibrahim


Dollar Brand voltou do exílio em 1968. Ele havia partido no início dos anos 1960, quando o regime do Apartheid apertou o cerco contra a cena de jazz sul-africana. No exílio, Brand gravou com Duke Ellington, tocou no Newport Jazz Festival e teve contatos com músicos como John Coltrane, Ornette Coleman, Pharoah Sanders, Cecil Taylor e Archie Shepp. Teve também maior contato com o movimento Black Power. Mas em 1968 ele está de volta a Cape Town, já convertido ao islamismo e com um novo nome: Abdullah Ibrahim.

É um momento em que ele começa a trabalhar mais com a musicalidade africana. E nesse movimento chega a essa maravilha que é o álbum Underground in Africa, de 1974. Nesse mesmo ano, ele convida os saxofonistas Basil Coetzee e Robbie Jansen, que haviam participado do álbum, para uma nova gravação. Conta-se que “Mannenberg” foi gravada em um só take. O título refere-se a uma área onde o regime do Apartheid despejou a população negra depois de expulsá-la de suas casas em Cape Town.

A música tem mais de 13 minutos, não tem slogans, nem mesmo letra, apenas algumas poucas palavras gritadas no final: “Oh Mannenberg! Jy kan na New York gaan, maar ons bly hier in Mannenberg!” (“Você pode ir para Nova York, mas nós estaremos aqui em Mannenberg!”). Apesar disso, tornou-se imediatamente um hino antiapartheid, tocada em todas as manifestações contra o regime.

Tanto que Abdullah teve que novamente partir para o exílio dois anos depois.

Hugh Masekela


Em 1967, nesse mesmo dia do Festival de Monterrey em que se apresentou com sua banda, Hugh Masekela tocou também com os Byrds, com quem ele já havia gravado. Exilado pelo regime do Apartheid, vigiado pelo FBI, perseguido pelos seus demônios interiores, Masekela levou seu jazz para além de todas as fronteiras. Quantos mais podem se vangloriar de ter tocado com Miles Davis, Jimi Hendrix e Sly Stone?  Masekela tocou com Bob Marley na Jamaica e com Fela Kuti em Lagos. Gravou músicas de Tom Jobim e Jorge Benjor, e emplacou um hit, “Grazing in the Grass”, no topo das paradas de sucesso dos Estados Unidos. Compôs dois dos principais hinos da luta contra o Apartheid: “Soweto Blues” e “Bring Him Back Home”, esta última feita em homenagem à Nelson Mandela, que era um grande fã de Masekela.

Junto com sua ex-mulher, Miriam Makeba, Masekela foi por muito tempo o mais famoso embaixador da resistência sul-africana. E conseguiu sobreviver a tudo, para ver o final do regime do Apartheid.

Malombo Jazz Makers


“A introdução dos tambores malopo, tradicionalmente usados ​​pelo povo Bapedi para ritos de cura, na música dos Malombo Jazzmen originais[3] foi um momento crucial de radicalismo político e cultural para o jazz sul-africano,colocando os sons e a cultura locais novamente no centro do jazz. Na década seguinte, os Malombo Jazz Makers se envolveram profundamente na oposição política ao Apartheid. Sua recuperação dos sons nativos os tornou os porta-estandartes musicais do movimento da Consciência Negra, e eles excursionaram clandestinamente pela África do Sul com o escritor e ativista antiapartheid Steve Biko” – Do texto que acompanhou o relançamento, em 2023, do disco Down Lucky’s Way, gravado em 1969.

Nos anos 1970, sob pressão do aparato repressivo do Apartheid, a banda resolveu deixar o país. O flautista e vocalista Abbey Cindi não conseguiu viajar, porque as autoridades o detiveram e tomaram seu passaporte. O percussionista Julian Bahula e o guitarrista Lucky Ranku se exilaram na Inglaterra, onde formaram o grupo Jabula, que teve a participação de Dudu Pukwana. Lucky Ranku também fez parte do grupo South African Exiles, liderado por Chris McGregor.

Bahula, Ranku e Cindi continuaram muito ativos na luta contra o Apartheid. Os dois primeiros propagandeando a causa pela Europa e Estados Unidos. Cindi na África do Sul, junto ao Movimento da Consciência Negra.

Bahula foi um dos organizadores e uma das principais atrações do Africa Sounds!, o concerto de 1983 para comemorar os 65 anos de Nelson Mandela que marcou o início da campanha internacional pela libertação do líder sul-africano.

Miriam e Bongi Makeba


“Lumumba” é uma composição de Bongi Makeba, filha de Miriam. Um dos filhos de Bongi, Nelson Lumumba Lee (nascido em 1968), tinha esse nome em homenagem a Nelson Mandela e Patrice Lumumba, e foram declarações de Miriam Makeba a respeito do assassinato de Lumumba que supostamente fizeram o regime do Apartheid bani-la do país.

Bongi compôs diversas músicas que se tornaram sucessos do repertório de Miriam, entre elas “Malcolm X” e “A Luta Continua”, esta última celebrando a independência de Moçambique. Bongi, que nasceu em dezembro de 1950, com a África do Sul já sob a opressão do regime fascista, nunca chegou a ver o fim do Apartheid: morreu em 1985, aos 34 anos.

Chris McGregor and the Brotherhood of Breath


“Tem a ver com a polirritmia africana. Comecei a ouvir as possibilidades de coisas acontecendo em muitos níveis rítmicos diferentes. Havia uma roda girando então, as coisas fluindo juntas...”, Chris McGregor descreve assim o desenvolvimento dos arranjos para esse primeiro disco do Brotherhood of Breath, uma big band formada por ele, seus companheiros do Blue Notes (Pukwana, Feza, Moholo e, às vezes, Johnny Dyani), outros exilados sul-africanos, junto com músicos europeus. “MRA” (equivalente de “Bra”, gíria para “brother”) é uma composição de Pukwana que já fazia parte do repertório do Blue Notes. O produtor é Joe Boyd, que na época estava também produzindo o Bryter Layter, do Nick Drake. Talvez por isso, McGregor toca piano em “Poor Boy”.

Há também, no YouTube, uma ótima apresentação do Brotherhood of Breath com Archie Shepp em Stuttgart, em 1989.

Johnny Dyani


O disco Song for Biko foi gravado em julho de 1978, meses depois do brutal assassinato de Steve Biko pela polícia do Apartheid. Dyani reuniu parceiros de longa data: Don Cherry, Dudu Pukwana (do The Blue Notes) e Makaya Ntshoko, baterista do The Jazz Epistles.

No mesmo ano, Dyani gravou outro disco, Witchdoctor’s Son, junto com Pukwana e John Tchicai, dinamarquês de origem congolesa. Entre os músicos de acompanhamento estão os brasileiros Luiz Carlos “Chuim” de Siqueira (bateria) e Alfredo Nascimento, do grupo Boa Nova. Nascimento toca o violão em “Ntyilo, Ntylo”:



Moses Taiwa Molelekwa


Em meados dos anos 1980, Molelekwa surgiu como um herdeiro de Abdullah Ibrahim ou de Herbie Hancock. Gravou com Miriam Makeba e Flora Purim, foi convidado por Hugh Masekela para fazer parte de sua banda e ganhou vários prêmios. Morreu jovem, em 2001, com apenas 28 anos. É uma referência muito importante para as novas gerações de jazzistas sul-africanos. “Rapela” é de seu segundo disco, Genes and Spirits, lançado um ano antes de sua morte. Na bateria está o camaronês Brice Wassy (que, entre tantas outras coisas, tocou na banda de Manu Dibango).

Bheki Mseleku


Autodidata, Bheki Mseleku era pianista, saxofonista, guitarrista, compositor e arranjador. Começou sua carreira em uma banda de rhythm and blues em meados dos anos 1970 em Johannesburg, mas logo teve que deixar África do Sul, como tantos outros artistas negros. Passou um tempo em Estocolmo e depois se estabeleceu em Londres.

Em 1991, gravou seu primeiro disco Celebration e foi a consagração. A partir daí ele assinou com a Verve, e gravou com astros do jazz como Abbey Lincoln e Elvin Jones. Mseleku é citado como importante influência por Thembi Dunjana e outros representantes do novo jazz sul-africano. Ele morreu em 2008, aos 53 anos.

Andre Petersen

A morte de Andre Petersen, vítima da Covid em 2021, foi um acontecimento trágico para o jazz sul-africano. Ele tinha apenas 43 anos, e não apenas era um dos principais nomes do jazz no país, mas era também um grande professor e incentivador de novos talentos. Aqui, uma gravação dele com um de seus ex-alunos, Bokani Dyer (nascido em Botswana, mas criado na África do Sul). E a versão dele e da também sul-africana Kathleen Tagg para “Rapela”, de Moses Molelekwa.

Andre Petersen & Bokani Dyer

Andre Petersen e Kathleen Tagg


Thembi Dunjana

Creio, e espero, que ouviremos falar muito da pianista, vocalista e compositora Thembi Dunjana. “Intyatyambo” é a faixa que dá nome ao seu primeiro disco, de 2021. Em 2024, ela lançou God Bless iKapa. God Bless Mzantsi.


O quinteto dela:


[1] https://www.npr.org/2017/04/26/525696698/the-legacy-of-the-jazz-epistles-south-africas-short-lived-but-historic-group

[2] https://www.psychedelicbabymag.com/2012/04/freedoms-children-interview-with-ramsay.html

[3] O percussionista Julian Bahula, responsável por colocar os tambores malopo no Malombo Jazzmen, saiu da banda e criou os Malombo Jazz Makers


Rogério de Campos é autor de livros como Um Santo em Marte, O Segredo da Sedução do Inocente Revanchismo


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