Por Benedita da Silva
A Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da necessidade de juntar forças com seus irmãos em torno da causa de sua atuação — a negritude de sua pele — e de agir como um grupo, a fim de se libertarem das correntes que os prendem em uma servidão perpétua. Procura provar que é mentira considerar o negro uma aberração do “normal”, que é ser branco. É a manifestação de uma nova percepção de que, ao procurar fugir de si mesmos e imitar o branco, os negros estão insultando a inteligência de quem os criou negros. Portanto, a Consciência Negra toma conhecimento de que o plano de Deus deliberadamente criou o negro como negro. Procura infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, religião e maneira de ver a vida.
Steve Biko
Enfim chega ao Brasil a voz de mais um dos mártires da luta de libertação do povo negro sul-africano assassinado pelo regime do Apartheid da África do Sul. Steve Biko, assim como Nelson Mandela, encarna com sua vida e sua morte o profundo sentimento de liberdade latente em todo homem que se recusa, mesmo ao preço da própria vida, a submeter-se aos mecanismos que tentam subtrair do homem a sua condição humana e sua liberdade. Contrapondo-se ao processo de desumanização imposto aos negros pelo Apartheid, Steve Biko define a Consciência Negra como a única atitude capaz de promover o reencontro do negro consigo mesmo e de resgatá-lo como agente de sua própria libertação, pela recuperação dos valores positivos e essenciais da cultura negra africana fundada nos pressupostos do humanismo africano e da fraternidade.
Profundamente imbuído de um sentimento religioso, o pensamento de Biko recupera para o negro uma identidade metafísica perdida no processo de coisificação determinado pela escravidão e pelas persistentes formas de discriminação racial existentes contra os negros em todas as partes do mundo — discriminação que o sistema do Apartheid retrata em toda a sua crueldade.
No entanto, Steve Biko não cai na velha armadilha da vitimização do negro e constrói uma reflexão na qual busca superar o maniqueísmo do algoz branco e da vítima negra, procurando detectar como a opressão tem seu resultado mais eficaz ao produzir no oprimido a consciência de subserviência e impotência para transformar sua situação real; e é justamente essa consciência deformada internalizada pelo negro o alvo principal da reflexão e da ação política de Steve Biko.
Ao condenar o Apartheid, Biko tem a coragem de reivindicar a África para os africanos: “Nada pode justificar a presunção arrogante de que um pequeno grupo de estrangeiros tem o direito de decidir sobre a vida da maioria”. Porém, observador impiedoso das sequelas produzidas em seu povo pela opressão racista, Steve Biko não teme afirmar que “a falta de bens materiais já é bastante ruim, mas, unida à pobreza espiritual, é mortífera. Este último efeito é provavelmente aquele que cria montanhas de obstáculos no curso normal de emancipação do povo negro”.
Esquadrinhando os efeitos mortais do racismo, Biko diagnostica a lógica que está por trás da dominação do branco — “Preparar o negro para desempenhar um papel subserviente neste país” — e chega às formas mais desagregadoras do processo de desumanização do negro ao identificar que “bem no fundo, sua raiva cresce com o acúmulo de insultos, mas ele a manifesta na direção errada — contra seu companheiro na cidade segregada, contra coisas que são propriedade dos negros. Ele não confia mais na liderança, […] e nem há uma liderança em que confiar”.
Portanto, a proposta política desenvolvida por Biko a partir do conceito de Consciência Negra implica o reconhecimento da miséria espiritual produzida pela opressão racista e um processo de olhar para dentro, num reconhecimento da cultura africana esmagada sob a acusação europeia de barbárie; retomar as práticas e costumes religiosos, valorizar a herança cultural, “reescrever a história do negro e criar nela os heróis que formam o núcleo do contexto africano”.
Lá, como entre nós, Biko explicita a importância da luta ideológica. É necessário construir heróis, instituir datas. Opor os Zumbis aos Domingos Jorge Velhos, os vinte de novembros aos treze de maios. Afirmar os valores positivos das culturas negras em oposição ao dilaceramento da decadente cultura ocidental, contrapor o nosso sentido de comunidade à impessoalidade do mundo ocidental.
A leitura dos textos de Steve Biko torna inevitável o reconhecimento da semelhança entre a situação do negro brasileiro e a do negro sul-africano, pois de um lado eles nos instigam a refletir sobre o nosso compromisso de solidariedade para com a luta do povo negro sul-africano e, de outro, nos obrigam a deter-nos sobre o estágio em que se mantêm as desigualdades existentes entre os grupos raciais no Brasil, tornando evidente que os métodos de segregação racial utilizados no Brasil e na África do Sul, embora diferentes entre si, alcançam resultados iguais. Os bantustões sul-africanos aqui são redefinidos nos conglomerados de favelas, alagados e invasões, compostos majoritariamente por população negra; a lei do passe sul-africana é aqui mascarada na exigência da carteira assinada, violenta e vexatoriamente requisitada pelos policiais brasileiros ao trabalhador negro desempregado e marginalizado. As taxas alarmantes de analfabetismo entre a população negra brasileira expressam no Brasil a igualdade de direitos e oportunidades” existente entre os cidadãos brasileiros, conforme preconiza a nossa democracia racial.
Essas condições tornam o pensamento de Steve Biko absolutamente atual no contexto das relações raciais do Brasil. Esperamos que ele seja fonte de inspiração para a reflexão e a ação política dos movimentos negros brasileiros e demais setores sociais comprometidos com a defesa dos direitos humanos fundamentais e com a construção de uma ordem social justa e igualitária, compromisso que está inequivocamente presente nos responsáveis pela organização deste livro e na decisão política de oferecê-lo ao público brasileiro.
Benedita da Silva é política, feminista e ativista pelos direitos da população negra e das mulheres. Primeira mulher negra a governar o Estado do Rio de Janeiro, teve trajetória marcada pela superação da pobreza e pela militância no PT. Sua atuação histórica une fé, resistência e compromisso com a justiça social.
