Alan Moore, cadê Jesus Cristo?

O autor de Jerusalém revela como criou o Céu e a Terra
16 de janeiro de 2025 por
Alan Moore, cadê Jesus Cristo?
Editora Veneta

Uma entrevista por Reinado José Lopes

O jornalista Reinaldo José Lopes entrevistou Alan Moore para escrever um texto sobre Jerusalém publicado na Folha de S. Paulo no dia 19 de outubro de 2024. Aqui está, pela primeira vez, a entrevista na íntegra, na qual Moore fala da influência de Einstein e de Gabriel García Márquez na escrita do romance e responde à pergunta de Reinaldo de José Lopes a respeito do lugar que Jesus ocupa em sua cosmogonia. 


Acho que nunca li uma representação mais contraintuitiva ou estranha da vida após a morte do que seu Andar de Cima. Você poderia me contar um pouco sobre o processo de formulação de sua lógica e caráter peculiares?

Bem, sendo que um dos temas principais do livro a noção de Einstein de um "universo em bloco" eterno, no qual experimentamos a mesma vida repetidas vezes, percebi que para descrever essa visão tetradimensional da existência eu também precisaria de um platô mais alto (quinta dimensão?) para olhar para baixo e ver tudo por completo. Como meu irmão mais novo, muito propenso a acidentes, aparentemente ficou morto por dez minutos após engasgar com uma pastilha para tosse, eu estava pensando em uma longa aventura em alguma forma de vida após a morte para fazer uso dessa experiência de quase-morte, e vi que esta seria uma oportunidade de descrever esse reino dimensional mais elevado de que a narrativa precisava.

Ao formular essa vida quinta-dimensional após a morte, tentei imaginar com que tipo de recompensa eterna as pessoas tão pouco recompensadas dos Boroughs, minha vizinhança natal, se sentiriam confortáveis. Senti que o mármore branco e enfeites dourados, nuvens e coros celestiais intermináveis ​​pareceriam classe média demais, e até intimidadores, para pessoas mais acostumadas com seus queridos e aconchegantes casebres, e então me lembrei do eufemismo usado durante minha infância para uma parente falecida: "Ela está lá em cima agora". "Lá em cima" soava como se provavelmente tivesse carpetes desgastados e rodapés lascados e camas e guarda-roupas do pré-guerra, como os da minha casa. E essa impressão foi reforçada por adultos me informando, quando trovejava, que eram anjos reorganizando seus móveis.

Tentando descrever este lugar, imaginei que lá em cima possivelmente seria um acúmulo de memórias e sonhos dos próprios Boroughs, apenas realizados em uma escala muito maior devido ao seu status dimensional mais alto, assim como um cubo tridimensional 2x2x2 é maior do que um quadrado bidimensional 2x2. Além disso, essa vida após a morte seria construída em torno de uma interpretação poética das leis que eu esperava que um plano de quinta dimensão seguisse, com o tempo sendo apenas outra forma de distância física, permitindo que o velho e o bebê corressem nus pelo buraco da eternidade no capítulo "Comendo Flores". Gradualmente, outros detalhes foram surgindo, como o fungo de quarta dimensão "Chapéus de Puck" que aparecem como fadas ou alienígenas cinzentos para os vivos, mas que fornecem uma forma estimulante, até mesmo inebriante, de sustento para os mortos. Igualmente, a noção de uma "Costura Fantasma" monocromática como uma espécie de mezanino espiritual entre os dois mundos, um lugar habitado por aqueles fantasmas da classe trabalhadora ou da classe baixa, com uma autoestima tão baixa que não se sentem dignos de entrar nos territórios mais elevados, e por um número aparentemente maior de fantasmas de classe média e alta que acham a ideia de um paraíso sem status social é um inferno insuportável. Como em grande parte do romance, seus detalhes e paisagens estranhos foram todos acumulados como recifes de corais, sugerindo-se no decorrer da escrita.

Li entrevistas suas mencionando que defunteiras (deathmongers) era um termo e função real nos Boroughs. E os aventais majestosos com insígnias místicas? Isso é uma fusão de suas memórias de infância sobre eles com algo totalmente diferente?

Embora outros lugares e outras comunidades tivessem pessoas que atendiam a nascimentos e mortes, até onde eu sei, apenas nos Boroughs elas eram conhecidas como defunteiras. Não me lembro de ter visto uma, mas só de ter ouvido falar delas como um fenômeno da história ainda recente do bairro, e de saber que minha avó paterna, Minnie May Vernon, havia entrado nessa profissão para se fortalecer depois de perder a filha primogênita de dezoito meses, também chamada Minnie May, para a difteria. A personagem da defunteira Sra. Gibbs no romance, junto com seu avental memorável, era basicamente um retrato literal de outra defunteira que eu tinha ouvido ser descrita, cujo nome também era Sra. Gibbs. A verdadeira Sra. Gibbs tinha dois aventais que ela usava para seu trabalho, dependendo de qual fim da vida ela estava atendendo. Para cuidar de um corpo morto, ela usava um avental preto; enquanto para um parto, usava o maravilhoso avental descrito no romance, um branco com abelhas e borboletas bordadas com paciência em volta da bainha. Quando encontramos a Sra. Gibbs nos Boroughs mais altos, exorcizando o demônio Asmodeus, ela está usando seu avental preto, mas os hieróglifos e símbolos egípcios em volta da bainha foram minha própria invenção.

Lendo seu livro, especialmente no começo, não pude deixar de pensar em Gabriel García Márquez. Acho que a saga familiar sobrenatural multigeracional parece, para nós, em essência latino-americana. Você sente alguma afinidade criativa com esse tipo de trabalho ou as semelhanças são apenas superficiais?

Na verdade, pensando bem, não me parece uma má analogia. É evidente que estou em dívida com muitos escritores no caso de Jerusalém — Blake, Clare, Joyce, a ficção científica da New Wave inglesa dos anos 1960-70 — mas eu diria que Márquez também deve estar lá em algum lugar. Fiquei muito impressionado com seu trabalho, em especial Cem Anos de Solidão, e com o fenômeno do "realismo mágico" que continuo a encontrar no trabalho de alguns talentos sul-americanos surpreendentes: Mariana Enriquez, Samanta Schweblin, Fernanda Trias e Ariana Harwicz me vêm à mente. 

Acho que, pensando bem, uma das muitas fontes básicas de Jerusalém foi minha sensação de que os blocos de casas populares, os locais de demolição e os terraços decadentes do meu próprio ambiente de infância mereciam e poderiam ser enxergados por meio de algum tipo próprio de realismo mágico. Estou aqui interpretando a expressão como uma tentativa de capturar um realismo mais amplo da existência humana, tornando a estranha e inegável poesia dessa existência uma parte válida da narrativa. Como eu disse, o impacto de Márquez provavelmente foi um componente vital na tentativa de uma abordagem da ficção semelhante em meu próprio trabalho. Obrigado por chamar minha atenção para isso.

                     

Por que criar uma versão da mitologia judaico-cristã na qual arcanjos e demônios parecem ter todas as cartas (ou todas as bolas de sinuca) e ainda assim não parece haver lugar para Jesus?

Como mencionado anteriormente, com Andar de Cima, ou ‘Mansoul’ como John Bunyan o nomeou em sua obra Holy War, eu queria um reino superior que fosse apropriado para a vizinhança terrena abaixo. Embora eu mesmo não tenha afinidade com o cristianismo — nem com nenhuma religião organizada, aliás —senti que precisava reconhecer que a imaginação espiritual dos Boroughs era predominantemente moldada pela tradição judaico-cristã, embora creio que a interpretação dos Boroughs sobre o cristianismo era bem diferente da interpretação convencional. Minha avó materna era cristã devota, mas nunca ia à igreja, mantendo um tipo de cristianismo de canto de cozinha, em grande parte de sua própria invenção, para acomodar sua ampla gama de crenças supersticiosas ou sobrenaturais. Sua filha, minha tia Hilda, também era uma cristã idiossincrática, com um canto de seu quarto dedicado a objetos religiosos, entre eles uma colagem/desenho que fiz retratando Glycon, a divindade-cobra do primeiro século. Minha própria mãe teria entrado na "igreja da Inglaterra" se perguntassem sobre sua religião em um formulário oficial, mas ela acreditava na reencarnação, sem nunca ter ouvido falar do budismo, até onde eu sei. Então, veja bem, se isso era cristianismo, não era o cristianismo com o qual a maioria das pessoas está familiarizada.

Para esse fim, ao conceber a arquitetura espiritual do meu reino superior, decidi fazê-lo instintivamente, tendo em conta que a espiritualidade dos Boroughs realmente parecia com isso. Todos reconheciam um Deus todo-poderoso, mas parecia que ele era uma presença remota que ninguém nunca de fato viu, encontrou ou falou. Assim, ao acrescentar outra parte única da terminologia dos Boroughs, imaginei Deus como meu "Terceiro Borough" perpetuamente fora do palco. Todos também reconheciam o diabo e seus asseclas do Halloween, mas estes eram vistos como sendo mais ativos e mais presentes nas ruas do distrito carente do que seu adversário divino. Imaginava-se que os anjos estavam presentes, mesmo que apenas reorganizando seus móveis durante tempestades. Jesus não teve muita atenção, exceto nas aulas da escola dominical ou na história da natividade repetida todos os anos, e então, além de algumas referências passageiras, ele não faz nenhuma aparição no meu romance. Esta também foi uma medida tomada para evitar que Jesus Cristo ou seu Pai eterno aparecessem como personagens envolvidos com o enredo, ou tivessem que falar diálogos, o que eu senti que seria limitante e com pouco propósito dramático. Como, da perspectiva dos Boroughs, anjos e demônios eram os jogadores mais ativos na cosmologia, e como eu também senti que esses seres me ofereciam muito em termos de enredo ou oportunidades de diálogo, eles foram escolhidos enquanto Jesus não, exceto por algumas referências iniciais à carpintaria.

À primeira vista, a conclusão de Alma de que simplesmente não há como “salvar os Boroughs”, não importa o que se faça, pode ser vista como politicamente desmobilizadora e desmoralizante. E isso, se me permite dizer, não parece com você (em seu trabalho e suas entrevistas). Por que terminar assim?

Obviamente, a série de pinturas de Alma Warren, destinada a resgatar de alguma forma o amado bairro de onde ela vem, é uma analogia direta para a série de capítulos em Jerusalém, que tentavam realizar a mesma coisa. Embora eu entenda por que você pode interpretar o "poslúdio" do romance como desmoralizante ou desmobilizador, não foi esse meu objetivo. A conclusão a que cheguei reflete como meus próprios pensamentos sobre o assunto mudaram ao longo dos dez anos que levei para escrever o livro: eu havia me tornado, por um lado, muito mais zangado, com muito desprezo pelas forças políticas que tão deliberadamente, tão conscientemente e ao longo de tantas décadas destruíram tanto aquela área empobrecida quanto a classe de pessoas que a habitava. Eu também me tornei mais comprometido com a ação política direta no bairro, como com minha linda, mas condenada revista underground Dodgem Logic, com sua distribuição de ajuda para aquela comunidade, seu relato dos abusos históricos e contínuos que o bairro sofreu, e no apoio aos esforços (ainda contínuos) de ativistas radicais e práticos como meu amigo Norman Adams, o Roman Thompson de Jerusalém. Tudo isso foi feito na metade da escrita do terceiro livro do romance, depois que eu me esgotei intelectualmente com o capítulo de Lucia Joyce, "Round the Bend", e precisei trabalhar em algo diferente - embora muito relacionado - por um tempo.

Eu também examinei meus próprios motivos e processos. Além do ativismo acima, como exatamente eu esperava "salvar" os Boroughs por meio de um romance literário provavelmente longo e difícil? Eu percebi que o que eu queria dizer com "salvar" os Boroughs era uma impossibilidade. O que eu queria fazer era restaurar a atmosfera genuinamente mágica e a identidade do lugar como de quando eu cresci lá, de alguma forma intacta e funcionando, em vez de como um horrível fantasma de "A Pata do Macaco" de W.W. Jacobs. Mas quase toda essa atmosfera fugidia foi gerada pelas pessoas específicas que eram seus residentes e pelo momento histórico específico que todos nós estávamos vivendo. É claro, essas pessoas e esse momento se foram e nunca mais voltarão. Essa é a mecânica simples da perda humana, e um livro ou uma série de pinturas não vai alterar isso. E nem deveria. 

Quando percebi que meus Boroughs nunca poderiam ser reconstituídos, exceto como um grotesco parque temático histórico, comecei a ver que, embora a arte não pudesse salvar ou restaurar fisicamente um lugar amado ou seu povo amado, ela poderia fazer algo talvez mais útil e duradouro ao "salvar" ou restaurar essas coisas no sentido de recriá-las e preservá-las. Afinal, o tempo acabará desfazendo até mesmo nossas reconstruções mais bem-intencionadas, mas, com sorte, uma obra de arte ou literatura pode perdurar tanto quanto nossa espécie. Com Jerusalém, eu poderia usar o poder mágico restaurador e preservativo da arte para salvar os Boroughs, levantar seus prédios desaparecidos e reanimar seus habitantes mortos, fazer um elaborado navio-em-uma-garrafa do bairro, para que a coisa de fato importante sobre ele — o que significava — pudesse ser mantida segura para sempre. À sua maneira, pensei na conclusão como triunfante.

Além de jornalista especializado em ciências, Reinaldo José Lopes é também tradutor de O Hobbit, Silmarillion e outros livros de J.R.R. Tolkien.


Relembre a campanha de Jerusalém no Catarse:


Trailer de Jimmy's End:


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