Por Érico Assis
Filosofia do Mamilo, de Kael Vitorelo, é um quadrinho autobiográfico que narra sua experiência com a mastectomia eletiva e que critica as barreiras burocráticas enfrentadas por pessoas trans e não-binárias no sistema judicial brasileiro. No trecho a seguir, parte da entrevista concedida a Érico Assis para newsletter virapágina — disponível integralmente no Substack —, Kael e Érico discutem todo o caminho antes de ser possível chegar ao centro cirúrgico: a própria tomada de decisão de fazer a mastectomia, a burocracia para conseguir realizá-la e a não-possibilidade de duvidar no meio do processo. (G.M.)
Não foi só do gênero que Vitorelo abdicou. FILOSOFIA DO MAMILO é um quadrinho autobiográfico que trata de quando ele decidiu fazer uma mastectomia eletiva – ou “mamoplastia masculinizadora” – e eliminar uma característica feminina do próprio corpo.
Lançado em 2024, Filosofia do Mamilo, de Kael Vitorelo, está disponível na Loja Veneta.
Se fosse um processo fácil, talvez não tivesse virado uma história em quadrinhos. Deitar numa maca e deixar o cirurgião trabalhar, claro, não é o complicado – o procedimento cirúrgico merece uma ou duas páginas do quadrinho. O complicado foi chegar até lá. É isso que ocupa as outras cento e tantas páginas.
Você pode pagar uma cirurgia dessas do próprio bolso, mas ela é cara. Pode fazer no SUS, mas tem que esperar até oito anos. Planos de saúde deviam cobrir, mas a maioria nega o procedimento. Dá para processar o plano de saúde, o que geralmente dá certo. E foi o que Vitorelo fez.
E estou resumindo muito todo o processo burocrático que ela atravessou, que aparece com um pouco mais de detalhes no quadrinho.
Não vou dar spoiler sobre o caminho – que foi longo e que é o que faz o quadrinho ser o que é –, mas acho que não é spoiler dizer que, em fevereiro de 2025, Vitorelo completou dois anos de vida sem os seios.
O jornalista e tradutor Érico Assis. Reprodução.
Falei que no quadrinho ela se retratava com várias dúvidas sobre o procedimento. Sobre o futuro, por exemplo: quando e se ele quiser ter filhos? Ele me contestou:
“Eu não diria que eu tinha dúvidas sobre o procedimento em si. Na verdade, muitas vezes a sensação que eu tinha era a de que eu parecia estar melhor informada do que alguns dos profissionais com os quais eu precisei lidar. Em alguns momentos, cheguei a pesquisar por conta própria porque senti que não podia confiar neles, ou preferi recorrer a outras pessoas trans do que a profissionais da saúde. À primeira vista isso pode parecer pouco científico: recorrer a relatos anedóticos de outros pacientes em vez de a profissionais que estariam, em tese, apoiados por estudos e artigos revisados por pares. Mas na minha experiência com a própria ciência, ela também não é neutra e é cheia de vieses.”
Mas a dúvida é um tema mesmo quando é falta de dúvida. Ou quando não se pode ter dúvidas:
“Parte da minha frustração com todo esse sistema é que ele realmente não te permite muito espaço para duvidar: você precisa ter certeza do que é e do que quer, porque a incerteza te faz correr o risco de perder acesso aos seus direitos. O espaço da dúvida é um privilégio que fica reservado às hegemonias identitárias. Isso me preocupa especialmente em relação às crianças trans e às crianças que só querem experimentar com gênero, independente do que elas sejam, já que hoje o tema virou um campo de disputa acirrado.”
E existem, sim, algumas dúvidas:
“Hoje, me permito ter mais dúvidas sobre o futuro - especialmente sem um corpo médico e jurídico me julgando. É muito bom a liberdade pra duvidar de si! Porque, apesar de tudo, minha indecisão com o futuro sempre foi construtiva, não concordo com uma visão fatalista de fim de mundo. Quero construir um mundo melhor porque quero insistir em continuar nele.”
Érico Assis é tradutor e jornalista. É autor de Balões de Pensamento (ed. Balão Editorial).