Por Rogério de Campos
A primeira notícia que temos a respeito de Angelo Agostini é da edição do dia 22 de maio de 1862 do jornal Correio Paulistano. É um anúncio em que os fotógrafos Perestrelo e Gaspar dizem ter “contratado o sr. Angelo Agostini, distinto retratista a óleo” para colorizar fotografias ou reproduzi-las em quadros. Assim, também no Brasil, a história dos quadrinhos se mistura, a partir do século XIX, com a da fotografia.
Autorretrato de Angelo Agostini, c.
1860-1880.
Como se sabe, o francês Nicéphore Niépce inventou a fotografia na mesma época (1826-1827) em que o suíço Rodolphe Töpffer inventou as graphic novels. E antes de se tornar o mais célebre fotógrafo do século XIX, Nadar foi o criador de La Vie Publique et Privée de Monsieur Réac (1849), a primeira série de tiras de quadrinhos[1].
Desenhista usando a câmera escura, no século XIX.
De lá para cá, as fotos têm servido aos quadrinistas, mais que tudo, como referência para desenhos mais realistas. Antes da internet, todos os estúdios tinham arquivos de imagens de referência, alguns deles pequenos, outros enormes. Alguns bem especializados: aviões de guerra, paisagens africanas, cavalos etc. Diversos desenhistas faziam quase uma espécie de fotonovela das histórias antes de desenhá-las.
Autorretratos de Nadar, século XIX.
A entrada da fotografia nunca significou o enfraquecimento do papel da imaginação, e se esta não aparece no resultado final, é porque não estava lá em seu momento inicial.
La Vie Publique et Privée de Monsieur
Réac (1849). Reprodução.
“Desenhos são interpretativos mesmo quando são versões escravas das fotografias. Estas geralmente são percebidas como o registro literal de um momento da realidade, mas não há nada de literal em um desenho”, diz Joe Sacco. “Um desenhista reúne elementos de maneira deliberada e define intencionalmente seu lugar em uma página. Não há a sorte do fotógrafo de tirar a foto precisamente no momento certo. Um ou uma desenhista ‘fotografa’ seu desenho no momento que escolher. É essa escolha que torna o desenho um meio inerentemente subjetivo.”[2]
RIP Kirby, de Alex Raymond.
Se, na maior parte das vezes, quadrinistas tão diversos quanto Hergé e Jack Kirby, Carl Barks ou Moebius disfarçaram bem o uso da ferramenta fotográfica em seu trabalho, em outros, a fotografia adquiriu certo protagonismo. Um exemplo conhecido é O Fotógrafo, em que o quadrinista Emmanuel Guibert e o fotógrafo Didier Lefèvre associaram fotos e desenhos para contar a passagem de Lefèvre pela equipe dos Médicos Sem Fronteiras que foi ao Afeganistão nos anos 1980, quando o país havia sido invadido pela União Soviética. Além do resultado visual ter ficado belíssimo, o uso das fotografias deu uma nota de credibilidade. E é com essa função, a da credibilidade, que várias fotografias entraram nos quadrinhos. Mas não só. Em Travesti, por exemplo, Edmond Baudoin usa fotos para reforçar a poética memorialística do texto de Mircea Cărtărescu: a fotografia entra mais ou menos como a realidade objetiva que, na lembrança, é recoberta pelas camadas de sentimentos. Ainda que a explicação de Baudoin para o uso das fotos seja mais simples: “cela ne m’intéresse pas de dessiner cela” (“não me interessa desenhar isso”)[3].
Página de O Fotógrafo.
Enfim, existem diversas teorias, artigos e teses acadêmicas a respeito dessa relação entre fotografia e quadrinhos. Recomendo, por exemplo, o texto “Representação de mídia e transmidiação em quadrinhos: o caso de Sabrina, de Nick Drnaso”, de Camila Augusta Pires de Figueiredo[4].
Mas, seja como for, dois autores em particular me intrigam muito pela maneira com que lidam com a fotografia: Marcello Quintanilha e Yoshiharu Tsuge.
Zhu Yiwen, Photo Art (Maio de 1963).
Já se elogiou bastante (e, ainda assim, não o bastante) o virtuosismo técnico de Quintanilha. E várias vezes já se disse que seus desenhos, de tão realistas, parecem fotografias. Mas me parece que tal elogio perde o ponto. Apesar de eu não ser um teórico, apenas um comerciante que vende gibis, vou tentar explicar: o Quintanilha diz que, quando bem jovem, estudou muito fotos de jogos de futebol. E que, com isso, aprendeu a ver o movimento dos corpos. Parece-me que a grande importância da fotografia no trabalho de Quintanilha está neste ponto. Assim como ele diz que não precisa estar no Brasil para fazer quadrinhos sobre o país, porque o Brasil está dentro dele, acho que, a partir daquelas fotos de futebol, Quintanilha pôde se libertar dos padrões de representação do movimento impostos pela indústria e tradição. Os primeiros trabalhos que vi de Quintanilha me impactaram como se fosse a primeira vez que eu via o Brasil nos quadrinhos, graças à maneira como retratava as paisagens e objetos, os rostos e palavras, mas houve algo que não soube entender naquelas primeiras leituras, só depois: a maneira como os personagens se movem é diferente. É como se o Quintanilha captasse o momento do movimento um pouco antes, ou um pouco depois, do que mandam os semióticos manuais de quadrinhos. E isso causa uma estranheza viva, mais real que nos realistas. Porque a vida é estranha, dizem as canções.
É claro que isso não resume a obra de Quintanilha. Ele desmonta a gramática dos quadrinhos a cada novo trabalho. E não só dos quadrinhos: leiam seu romance Deserama.
Deserama, de Marcelo Quintanilha.
Enfim, isso não é uma teoria. É, no máximo, uma constatação ou, menos, um palpite.
Também só posso oferecer um palpite a respeito da maneira como a fotografia entra na história “Nejishiki”, de Tsuge.
Ele criou essa história na época em trabalhava no estúdio de Shigeru Mizuki, que fazia um uso intenso das fotos de referência — segundo o pesquisador e tradutor Ryan Holmberg, Mizuki chegou a ter problemas por causa disso nos anos 1970, acusado de violação de direitos autorais. Tsuge fez, ele próprio, fotos para o arquivo de Mizuki e seu interesse por câmeras fotográficas está registrado em O Homem Sem Talento.
Dois pesquisadores japoneses, Adachi Morimasa e Fujimoto Kazuya, catalogaram centenas de imagens de mangás de Mizuki que usam fotografias de referência. Todas demonstrando que, se houve violação de direitos autorais dos fotógrafos, foi por uma boa causa[5]. Em sua pesquisa, Adachi e Fujimoto também localizaram as fotos usadas por Tsuge em “Nejishiki”. Algumas são de fotógrafos bem famosos, como Kimura Ihei ou Elliot Erwitt. Aquela imagem tão absurda e surreal, da viela com placas de oftalmologistas, é baseada em uma foto do chinês Zhu Yiwen, publicada na revista Photo Art em 1963. Ou seja, aquela viela de fato existiu!
Foto de Kimura Ihei usada como referência por Tsuge em “Nejishiki”.
É quase certo que Tsuge trabalha a partir do mesmo arquivo de Mizuki. Mas há uma diferença notável entre as estratégias dos dois artistas.
Imagem de Showa, de Shigeru Mizuki (seja como for, vou levar meu exemplar).
Mizuki, como tantos quadrinistas antes e depois dele, vai ao arquivo à procura da foto certa, aquela que dará mais realismo à cena. E a foto entra da maneira mais harmônica possível dentro da cena para ser parte do desenho. Para explicar melhor, talvez seja o caso de citar um exemplo mais extremo desse procedimento: Ryoichi Ikegami (Crying Freeman, Sanctuary, Mai, the Psychic Girl), que também foi assistente de Mizuki e fala com orgulho de ter trabalhado ao lado de Tsuge, de quem era fã. É bem nítido que Ikegami trabalha muito a partir de fotos, e podemos imaginar que elas venham principalmente de revistas de moda masculina, revistas eróticas ou de cenas de filmes de gângsters. A iluminação, nos quadrinhos de Ikegami, é sempre “cinematográfica”, parece vir de spots. Mas tudo isso é recoberto pelo desenho de Ikegami para tornar-se quase invisível ao leitor. O resultado é um tanto semelhante ao trabalho de Neal Adams, de quem Ikegami também se declara fã (artistas costumam ser uns fãs bem ecléticos), e, julgamentos de valor à parte, é bem convencional. Não parece haver uma imagem em Ikegami (ou em Adams, aliás) que não tenhamos visto antes em algum filme. Os números de vendas demonstram que não faltam fãs para isso.
Imagens de quadrinhos de Ryoichi Ikegami.
Convencional é uma palavra que não há como ligar a Tsuge. Se outros procuram a harmonia e unidade, Tsuge parece buscar em “Nejishiki” a desarmonia, a dissonância. As fotos em “Nejishiki” parecem ter pouca ou nenhuma relação com a narrativa, como se escolhidas ao acaso. As imagens vindas das fotos são desproporcionais às outras. Alguém poderia falar em “colagem cubista”, mas não há em “Nejishiki” o humor desafiador de meninos arteiros como Braque e Picasso, desejosos de escandalizar a burguesia. No campo dos quadrinhos, a coisa mais próxima que me vem à mente são os détournements de quadrinhos criados pelos situacionistas, mas também nesses Débord e seus amigos têm o objetivo de escandalizar a burguesia e intelectuais aburguesados. Em “Nejishiki” não há propósito, Tsuge parece se livrar da intencionalidade. O que me faz pensar em Tsuge como um legítimo herdeiro do monge zen-budista Ikkyu. Mas isso fica para outro texto.
Como editor, Rogério de Campos lançou revistas como a Animal e a General, mangás como Dragon Ball e One Piece, e livros, muito livros. Como autor, publicou Revanchismo (2009), Dicionário do Vinho (2012), O Livro dos Santos (2012), Imageria (2015), Super-Homem e o Romantismo de Aço (2018), Uma História dos Quadrinhos para Uso das Novas Gerações (2022), Um Santo em Marte (2023) e O Segredo da Sedução do Inocente (2024).
[1] Estou aqui apenas repetindo coisas que já escrevi no livro Imageria (Veneta, 2015).
[2] Journalism, Joe Sacco (Metropolitan Books, 2012).
[3] https://www.citebd.org/neuvieme-art/photographie
[4] https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/76985/2/Representação%20de%20mídia.pdfA.pdf
[5] A editora Devir publicou diversos de seus trabalhos no Brasil, entre eles Nonnonba, Hitler e Marcha para a Morte. Recomendo muito.