Uma entrevista com Alice Ruiz por Guilherme Ziggy
Alice Ruiz fez do erotismo um território de liberdade, especialmente para as mulheres, em plena Ditadura Militar. Roteirista de HQs publicadas pela Grafipar, ela ajudou a abrir caminho para uma linguagem em que corpo, desejo e política se entrelaçam. Décadas depois, parte desse material foi reunido pela Veneta no livro Afrodite: Quadrinhos Eróticos. Agora, com Paulo Leminski como autor homenageado da 23ª Flip e ela entre as convidadas da festa, Alice relembra esse período fértil e subversivo, fala sobre a escrita em parceria, a convivência com Cláudio Seto, e reflete sobre os caminhos do erotismo e da palavra ontem e hoje.
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Você se lembra do primeiro quadrinho que leu?
Não lembro.
Como surgiu o convite para escrever roteiros eróticos para a Grafipar nos anos 1970?
Na verdade, ninguém nos convidou. Eu fui contratada pela Grafipar para coeditar a revista Rose, voltada para a mulher consciente e dona de si, o que considero bastante político, e editei a revista Horóscopo de Rose para a qual eu roteirizei alguns deuses gregos correspondentes aos planetas regentes dos signos. Muita coisa assinei como Urânia. Mas era muito trabalho e algumas vezes convidei o Paulo para escrever alguns roteiros de HQ. Ele assinava como Professor Hamurabi.
Como era escrever HQs eróticas naquele contexto de censura e repressão?
A censura, na época, era mais voltada para coibir temas sociais do que eróticos. Talvez os encarregados não tivessem se dado conta ainda de o quanto a expressão da libido é revolucionária, especialmente para a mulher.
Como era o processo de escrita em parceria com Leminski? Vocês escreviam os roteiros em dupla ou cada um criava sozinho?
Separadamente. Nossas únicas parcerias são a prole e uma música.
Alice, Paulo e as filhas, nos anos 1980. Foto: Lina Faria.
Você se envolvia com o desenho também, dava sugestões visuais, ou deixava por conta dos artistas?
A roteirização implica em sugerir as imagens também. A própria página para confecção de roteiros já vinha diagramada com as duas pautas: de um lado texto, do outro: sugestão de imagem.
Cláudio Seto, esse “samurai dos quadrinhos”, foi um dos artistas que deu forma às histórias que você e Leminski escreveram. Mas ele também era amigo, colega de ofício. Como era a convivência com ele? Há alguma memória afetiva ou cena que ficou guardada com carinho entre vocês dois?
Grande Seto, a HQ brasileira deve muito a ele. Na Grafipar ele dirigia o setor, além de desenhar também. Foi visitando sua sala que me deu vontade de experimentar essa linguagem também. Trabalhamos juntos lá e depois na Fundação Cultural, quando fui Presidente. Achei que o Seto merecia um cargo de maior destaque do que ocupava e ofereci a ele. Mas o Seto recusou dizendo que era mais feliz, e livre para criar, com menos poder e responsabilidades. Um sábio, sempre. Lá, ele me presenteou com a árvore de haikais. E, depois disso, me surpreendeu com a tradução de vários haikais meus, para o japonês. Sou feliz por tê-lo tido como amigo, gostaria que tivéssemos nos frequentado mais e que ele e o Paulo tivessem convivido mais, também.
Trecho de Afrodite: Quadrinhos Eróticos.
Você costuma trabalhar com delicadeza, com o mínimo, com o silêncio — o haicai. O erotismo de Afrodite parece ser outra linguagem: mais direto, mais corporal. Como você vê isso hoje? Há poesia no quadrinho erótico?
A palavra é útil em várias formas e gêneros. Já escrevi ensaios, uns contos, muitas letras de música, milhares de haikais e poesia mais do jeito ocidental. E HQ, claro. E adoraria ter fôlego para uma ficção longa, mas não sei se tenho a disciplina necessária.
Você acredita que o erotismo pode ser uma forma de resistência? O corpo feminino, no caso dessas HQs, aparecia como alvo ou como voz?
Como voz, como sujeito, sempre. Pelo menos, nos meus roteiros, é como disse anteriormente, isso é também um jeito de fazer política. Aliás, é oprimindo a mulher que se cria pessoas submissas, não é mesmo?
O que mudou de lá para cá no erotismo? As pessoas ficaram mais livres ou mais puritanas, na sua opinião?
As duas coisas: os libertários estão mais livres, os puritanos mais caretas.
Você gostaria de escrever quadrinhos novamente hoje? Algum artista contemporâneo com quem toparia colaborar?
Não pensei nisso. Talvez.
Você escreveu haicais, letras de amor, erotismo, infantil, traduções. Existe uma unidade em tudo isso? O que une todas essas linguagens na sua trajetória?
Não tem tanta letra de amor, não. Na verdade, escrevo sobre os mais variados assuntos, questionamentos sobre a vida, inclusive sobre o próprio ato de escrever. Acho que o que une todas essas linguagens é uma constante atenção com a própria palavra, que é o instrumento de todas elas.
Alice Ruiz é uma poeta, letrista, tradutora e haicaísta nascida em Curitiba, Paraná. Com uma carreira iniciada na década de 1970, destacou-se por sua linguagem lírica, concisa e sensível. Foi parceira artística e companheira de Paulo Leminski, com quem teve três filhos. Autora de dezenas de livros, também colaborou com músicos como Itamar Assumpção e Arnaldo Antunes.
Guilherme Ziggy é poeta, tradutor e jornalista. É autor de Consultas autônomas (2019) e Pequena passarela sobre o abismo (no prelo, 2025).