Este trecho faz parte de Afrodite: Quadrinhos Eróticos, de Alice Ruiz e Paulo Leminski, que está em pré-venda no nosso site com 20% de desconto.
Por Alice Ruiz
Na Curitiba do final dos anos 70 surgiu um presente para escritores, desenhistas, fotógrafos, quadrinistas, enfim, esse tipo de gente que não quer abrir mão do que gosta de fazer e sonha diariamente em sobreviver disso. Era, enfim, uma editora-gráfica com um amplo leque de revistas: a Grafipar. De repente, éramos viáveis. Tínhamos trabalho prazeroso. Sem falar que a sala de redação mais parecia uma reunião de amigos e também um lugar para fazer novos amigos e novos parceiros, para encontrar pessoas com afinidades e sensibilidades em comum: Rettamozzo, Solda, os gêmeos Luiz e Toninho Stinghen, Marília Guasque... melhor parar que a lista é grande.
Paulo Leminski e Alice Ruiz nos anos 70. Reprodução.
Tirando a revista Atenção - um espaço para falar mais seriamente de temas da época - e para a qual muitos de nós fazíamos freelance, todas as outras revistas tinham o sexo como tempero principal. Fosse qual fosse o assunto, o gancho de tudo era o sexo. Afinal, a editora tinha que sobreviver.
Começou com a revista Eros, mais voltada ao público masculino. Essa, por sua vez, anagramaticamente, gerou Rose, revista para a qual fui chamada a co-editar e que tinha um slogan sugestivo: “a revista que tira a roupa dos homens e informa as mulheres”.
Primeiro número da revista Rose, 1979. Acervo CEDOC.
Era 1979, o conhecido “ano da abertura”, e o feminismo – do qual eu fazia parte – já estava na sua quarta ou quinta fase, se contabilizarmos as pioneiras francesas do final do século XIX. MacLuhan havia dito que as mulheres não eram visualmente orientadas e que só acreditaria na igualdade entre os gêneros no dia em que existissem revistas para mulheres que mostrassem a nudez masculina. Ligia Mendonça, Ana Lúcia Rocha, ambas jornalistas, e eu, livre atiradora, não tivemos dúvidas, colocamos o nu masculino para nossas leitoras.
Trecho de "Papel Princpal", HQ de Alice Ruiz e Júlio Shimamoto. Reprodução.
Mas, como sabemos, a “abertura tinha que ser lenta e gradual”, logo, nada de exposição frontal. Os vários homens que se deixaram fotografar apareciam sempre de lado, com as pernas cruzadas ou com um violão, livro, enfim, algum objeto entre elas, que ocultasse os órgãos genitais. Às vezes tínhamos que recorrer aos bancos de imagens, quase sempre estrangeiros, onde, então sim, as fotos traziam tudo à mostra.
Nosso recurso era publicá-las com uma tarja preta, quase sempre maior do que seria necessário, com a mal disfarçada intenção de estimular a imaginação de nossas leitoras. Entre artigos sobre sexualidade feminina, “Por Dentro do Sexo”, e matérias sobre todos os outros temas voltados aos direitos das mulheres, “Rose Fora da Cama”, eu escrevia o horóscopo da revista, o que me levou a ser convidada a editar uma publicação sobre astrologia: Horóscopo de Rose.
Mas a cereja do bolo na Grafipar eram as HQs. Antes de ser contratada pela editora, cada vez que Paulo e eu íamos levar nossos textos para a revista Atenção, dávamos uma passada na sala do Cláudio Seto, chefe da equipe dos quadrinistas, para um abraço e dois dedos de prosa com esse último samurai e primeiro monge que conheci. Acho que foi assim que comecei a querer me aventurar nos roteiros para quadrinhos.
Até que em uma viagem de trem, pela estrada da Graciosa, a ideia veio. E veio como uma resposta ao Dalton Trevisan, autor de maior renome, até então, na terra das araucárias. Sua prosa retrata as patifarias cotidianas com uma naturalidade que beira a aceitação. E sabemos todos que, em matéria de patifaria, as mulheres têm um papel muito infeliz.
Assim, criei meu primeiro roteiro de HQ, em que a personagem adquire vida e, revoltada com seu papel na estória (ou seria história?), mata seu tirano escritor/criador no final.
Trecho de "Papel Princpal", HQ de Alice Ruiz e Júlio Shimamoto. Reprodução.
Não parei mais, fazia roteiros feministas para a revista Rose e roteiros de terror para os gibis coordenados pelo Seto. Para o Horóscopo de Rose, inventei de roteirizar a mitologia grega relacionada aos deuses associados aos planetas regentes de cada signo. E, sem esquecermos, sempre erotizados, condição sine qua non da editora.
Muitas vezes o Paulo colaborou com a revista Rose e com a revista Horóscopo de Rose, que tinha uma considerável redação: eu, Urânia (meu heterônimo para especificidades astrológica), o Paulo, o Professor Hamurabi (pseudônimo dele) e alguns outros poucos nomes que variavam de exemplar para exemplar. Convidei o Paulo para escrever o roteiro da HQ de Júpiter e ele, que também já escrevia roteiros para outras revistas da Grafipar, topou. Mais pelo prazer do que pela grana, que não era muita, para esses free-lancers.
Mas quem se importava com isso? Estávamos vivendo a deliciosa experiência de descobrir uma nova forma de expressão, mais leve, mais alegre, mais rápida, e, sem dúvida, muito mais sexy.
PS: Ligia, Ana e eu fazíamos rigorosas reuniões de pauta tentando achar quais eram os temas mais importantes a abordar a cada nova edição. Temas do momento, ou os que nos pareciam mais urgentes no processo de conscientização da mulher. Cada detalhe era meticulosamente avaliado para atingirmos nosso objetivo e oferecermos o melhor, mais atual e bem escrito para nossas leitoras. Embora não recebêssemos muitas cartas delas, sabíamos que as duas revistas vendiam bem.
Passado mais de um ano e um relativo sucesso, o diretor da Grafipar, Faruk El Katib, decidiu contratar uma empresa de pesquisas para poder acelerar ainda mais as vendas. Foi quando descobrimos o verdadeiro perfil de “nossas” leitoras. A revista Rose era comprada, quase que em sua totalidade, por homossexuais masculinos. Que, evidentemente, não liam nossas reportagens mais sérias. Basicamente olhavam as fotos. Segundo a pesquisa, as mulheres tinham vergonha de comprar a revista. Desnecessário dizer que nós três perdemos o emprego para dois rapazes mais no perfil dos “leitores”.
Agora eu rio.
Alice Ruiz (1946) é uma poeta, letrista, tradutora e haicaísta nascida em Curitiba, Paraná. Com uma carreira iniciada na década de 1970, destacou-se por sua linguagem lírica, concisa e sensível. Foi parceira artística e companheira de Paulo Leminski, com quem teve três filhos. Autora de dezenas de livros, também colaborou com músicos como Itamar Assumpção e Arnaldo Antunes.