A HQ Filosofia do Mamilo, de Kael Vitorelo, foi destaque na revista literária Quatro Cinco Um. Leia um trecho a seguir da resenha de Caio de Souza Tedesco. Para ler a matéria na íntegra, clique aqui.
Por Caio de Souza Tedesco
A leitura de Filosofia do Mamilo foi mais um dos experimentos que parte de mim desejava evitar, enquanto outra estava ávida para devorar. Página por página, letra por letra, desenho por desenho. Eu sabia que o livro ia me impactar, e decidi embarcar mesmo assim. As sensações foram ambíguas: o prazer de se sentir envolvido pelas águas, mas também a angústia de não conseguir respirar.
Kael Vitorelo é quem nos convida a mergulhar nesse rio de águas agridoces. Com um misto de delicadeza e firmeza, elu pega a pessoa leitora pelas mãos e a submerge nas profundezas do seu corpo fluvial, convidando-nos a conhecer algumas hidrovias pelas quais foi constituída sua trajetória. A narrativa me proporcionou uma experiência intimista, que remete a algo de profundo nas subjetividades e à própria metáfora da água — pela qual tenho apreço e, pelo visto, Vitorelo também. Afinal, “a vida é o rio”.
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O corpo fluvial — em que mergulhamos e percorremos junto a Vitorelo — tem como trama principal a jornada de uma mastectomia eletiva ou, como aparece na história, uma “mamoplastia masculinizadora”. Por seu olhar crítico, somado à sua identidade de gênero não binária, evidencia-se uma grande capacidade de tensionamento do binarismo de gênero, expressa na HQ de maneira artística e didática. Vitorelo questiona, por exemplo, por que retirar as glândulas mamárias torna uma mamoplastia “masculinizadora”. Quem define o que “é de homem”? O que torna alguém “mulher”?
Trecho de Filosofia do Mamilo, de Kael Vitorelo.
Aí vemos uma pegada transfeminista que remete a intelectuais como Judith Butler, Letícia Carolina Nascimento e Paul Preciado, quando discorrem sobre generificação dos corpos, corporeidades e processos de corporificação — práticas que visam modificar ou manter determinadas características físicas, como colocar piercing, cortar o cabelo ou injetar testosterona sintética. Tais construções ocorrem por meio de categorizações que transformam pernas lisas ou peludas, peles macias ou ásperas, ovários e testículos, entre outras características e órgãos em “femininos” ou “masculinos”.
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A trama também mescla tempos, e assim vamos nadando e sentindo as mudanças das águas agridoces de Vitorelo. As memórias e emoções se alternam como a temperatura de um rio em suas profundidades diversas. Percorremos a dureza de ser taxade de menina e todas as implicações que isso possui, os ressentimentos da puberdade e até mesmo uma acalentadora primeira infância, na qual o gênero ainda não podia lhe afogar.
Trecho de Filosofia do Mamilo, de Kael Vitorelo.
A recuperação do passado, a narração de memórias e a ressignificação da história transformam o individual em coletivo, ao mesmo tempo em que ressaltam o coletivo que habita o individual. Essa é uma característica das narrativas de si, como autobiografias e autoficções, de pessoas trans: a capacidade de, por meio da linguagem e apesar do cistema, cultivar vida.
Uma das estratégias de manutenção da assepsia cistêmica é manter a ideia de que nossas existências seriam fantasiosas, falsas e antinaturais. Assim, a invisibilização das nossas narrativas é uma forma de impedir a constituição de coletividade e o entendimento de si. Impede os processos de identificação e a criação de tramas intersubjetivas fundamentais para o cultivo das vidas transgressoras de gênero.
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Com Kael Vitorelo, ainda é possível vivenciar essa espécie de cura coletiva ao mergulhar em uma HQ estética, ética e politicamente bem elaborada. A partir da leitura, já não quero mais atravessar o rio para chegar ao outro lado, quero criar guelras e seguir cultivando vidas transformacionais, tecendo narrativas outras, para que um dia nossos corpos, existências e mamilos sejam realmente nossos.
Caio de Souza Tedesco é historiador e membro do Centro de Referência da História LGBTQIA+ do RS.