Tsuge: cada quadrinho uma revolução

A legendária “Nejishiki” fez uma revolução nos quadrinhos japoneses, mas Tsuge não parou ali. O livro Nejishiki reúne também as histórias que surgiram depois daquela primeira revolução. Cada uma demonstra que Tsuge seguiu subvertendo os mangás.
23 de janeiro de 2025 por
Tsuge: cada quadrinho uma revolução
Editora Veneta

Por Rogério de Campos 

O sucesso de “Nejishiki” incomoda Tsuge. Junto com uma fã que acabara de conhecer, foge para Kyushu, no sul do Japão. Mas treze dias depois está de volta. Essas tentativas de fuga são frequentes desde que Tsuge era bem jovem. Fugas inúteis, cada vez mais frustrantes, porque não há lugar que não seja invadido pela modernização americanizada, porque não há lugar onde ele possa se livrar de suas angústias e todas as novas paisagens só aumentam o sentimento de perda… Mas, ainda assim, ele continua fugindo.

“O Dono da Pousada Gensenkan” é publicado um mês depois de “Nejishiki”. O desenho, detalhista, demonstra o fascínio de Tsuge por lugares decrépitos. O clima é opressivo, quase o de uma história de terror. “Através desse mergulho no abismo onde cada personagem parece condenado, ele evoca a realidade do nada, a persistência do mundo dos mortos neste dos vivos, a liberdade que é concedida a cada um de nós… Assim como em ‘Nejishiki’, as angústias internas do autor atingem o leitor com toda a força”, diz Léopold Dahan[1]. Um dos motivos que serão frequentes na obra de Tsuge desse período já está aqui: o da violência sexual, retratada sempre com toda a melancolia, como uma espécie de pesadelo antierótico, como brutal manifestação da impotência. E sempre ligada a outro motivo, que, este sim, será constante em Tsuge: o da inutilidade, existencial e social.

Trecho de "O Dono da Pousada Gensenkan". Reprodução.

Na análise que fazem do Homem sem talento para o livro/catálogo Yoshiharu Tsuge ‘Être sans exister’, Stéphane Beaujean, Leopold Dahan e Xavier Guilbert apontam que há uma essência subversiva nessa “inutilidade”:

“Este livro pode ser visto como o gesto final de um artista que parece ter procurado ao longo de sua carreira preservar sua dignidade. Aimé Césaire, em Diário de um retorno à terra natal, reapropriou-se do termo pejorativo ‘negro’ para torná-lo uma ferramenta de denúncia da vergonha de si próprio, da imitação, da despersonalização. Usou a palavra como uma crítica ao capitalismo colonial. Com a expressão  ‘sem talento’, que enfrenta todo o desprezo e rejeição dos japoneses pelos ‘inúteis’, considerados as verdadeiras vergonhas da sociedade, Tsuge parece reivindicar para si uma qualidade proibida pela modernidade produtivista japonesa. Como se quisesse rejeitar o que ele considera ser um mundo carente de humanidade e sensibilidade à beleza”[2].

Talvez por isso também Tsuge tenha se tornado um dos autores favoritos da juventude radical de esquerda. “Que os estudantes rebeldes anti-Yoyogi[3] estão lendo os mangás de Yoshiharu Tsuge por trás das barricadas é algo que não se tem dúvida”, diz Shuji Terayama, escritor, dramaturgo e cineasta (e herói da contracultura japonesa), em um ensaio publicado no início dos anos 1970. “A característica revolucionária dos mangás de Tsuge não consiste em revelar algo que se encontra no cerne da vida cotidiana, mas algo que está dentro do próprio ‘extraordinário’, no que poderíamos chamar de ‘errâncias do coração’”. Terayama nota o paradoxo do próprio Tsuge parecer não ter qualquer interesse pela movimentação revolucionária, mas aponta: “Se Yoshiharu Tsuge, esse jovem mangaká que vê a vida como uma festa da qual ele sempre é excluído, que toma muitos soníferos, vive solitário como um cadáver e não demonstra interesse pelos eventos contemporâneos, é tão apreciado pelos estudantes, é provavelmente porque no fundo de sua consciência há uma ‘outra dimensão’ no seio da qual se pode ser verdadeiramente livre”[4].

Em 1970, Tsuge deixa talvez de ser um “cadáver solitário”: passa a viver (e viajar muito) com a atriz Maki Fujiwara e abandona a Garo e os quadrinhos. Só retorna em 1972, na revista Yakō, fundada por Takano Shinzō, um ex-editor da Garo. Na Yakō publica “Passeio dos Sonhos”, que surpreende os fãs pela mudança radical: não apenas o traço é minimalista, mas a própria narrativa é quase lacônica. Tsuge parece abandonar as técnicas de desenho aperfeiçoadas em quase vinte anos de profissionalismo – por isso ele é considerado um precursor da corrente Heta-Uma, “ruim mas bom”, uma espécie de movimento punk vanguardista nos quadrinhos japoneses. Em “Passeio dos sonhos”, porém, Tsuge também abandona, de vez, a própria obrigação de contar histórias que tentam responder às expectativas dos leitores.

“Passeio dos sonhos” parece a reprodução de um sonho/pesadelo, como em “Nejishiki” e “O dono da pousada Gensenkan”, mas é ao mesmo tempo muito realista, muito ligada à vida cotidiana, a ponto de muitos leitores imaginarem que a HQ é autobiográfica. “Depois de ‘Passeio dos sonhos’ passei a usar muito do estilo autobiográfico”, diz Tsuge, “e os leitores, equivocadamente, acreditaram que eu estava transcrevendo com fidelidade minhas viagens… Gostei desse mal-entendido”.

 

Trecho de "Passeio dos Sonhos". Reprodução.

“Capturado pela noite”, de 1976, é a última história que Tsuge publica em uma revista de grande tiragem, a já tradicional Manga Sunday (que também publicou Osamu Tezuka, Shigeru Mizuki e Yoshihiro Tatsumi). Desse momento até 1979, Tsuge afasta-se mais ainda do mundo dos quadrinhos, entrando em depressão com a notícia de que Maki Fujiwara está com câncer.

Trecho de "Capturado pela noite". Reprodução.

“Trabalhinho”, de 1977, não é publicada em um gibi, mas numa revista de poesia chamada POEM, que dedicou uma edição a Tsuge. A produção do mangaká nesse período é bem pequena, algumas poucas histórias que publica na Yakō, como a “A vida do Cabo Komatsu”, publicada em 1978, e “Inchaço de fora”, de 1979. Nesta última, ele retoma o uso do guache, de uma maneira que já ensaiava em cadernos desde o final dos anos 1960.


Trecho de "Trabalhinho". Reprodução.

Ainda em 1979, surge a revista bimestral Custom Comic, com a ambição de reunir os mais célebres mangakás do Japão: não apenas Tsuge, mas também outros autores bem diversos, como Yoshihiro Tatsumi, Takao Saito, Kazuo Koike e Goseki Kojima, Leiji Matsumoto, Sujumu Katsumata… A Custom Comic dura apenas três anos e Tsuge publica lá apenas umas poucas histórias.

No início dos anos 1980, portanto, parecia que com “Nejishiki” e essas outras pequenas HQs, Tsuge já havia garantido seu lugar entre os maiores quadrinistas do Japão – para muitos, no topo da lista. Mas ainda teríamos O Homem Sem Talento

 

[1] DAHAN, Léopold. Postface. In: TSUGE, Yoshiraru. La Vis. Tradução de Léopold Dahan. Paris: Cornélius, 2019.

[2] BEAUJEAN, Stéphane; NOROT, Anne-Claire (org.). Yoshiharu Tsuge ‘être sans exister’ Angoulême : 9ªArt+ éditions, 2020.

[3] Yoyogi era um dos apelidos do Partido Comunista Japonês, contra o qual se insurgiram os estudantes antistalinistas que ocuparam as universidades do país no final dos anos 1960 e início dos anos 1970.

[4] TERAYAMA, Shuji. Zoku – ‘sho wo sute yo, machi he deyô’. Haga Shoten, 1974. Conforme citado em BEAUJEAN, Stéphane; NOROT, Anne-Claire (org.). Yoshiharu Tsuge ‘être sans exister’ Angoulême : 9ªArt+ éditions, 2020.


Como editor, Rogério de Campos lançou revistas como a Animal e a General, mangás como Dragon Ball e One Piece, e livros, muito livros. Como autor, publicou Revanchismo (2009), Dicionário do Vinho (2012), O Livro dos Santos (2012), Imageria (2015), Super-Homem e o Romantismo de Aço (2018), Uma História dos Quadrinhos para Uso das Novas Gerações (2022), Um Santo em Marte (2023) e O Segredo da Sedução do Inocente (2024).

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